Crise atual tem origem nas reações dos países ao colapso de 2008, afirma economista

 

A cientista social e doutoranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp, Juliane Furno, explica os motivos da atual crise econômica, projeta suas consequências e opina sobre possíveis saídas

No Brasil, 38 milhões de trabalhadores são informais, o que equivale a 41% da mão de obra ativa. Com as medidas de prevenção à pandemia do coronavírus, como fechamento de estabelecimentos comerciais e restrição à circulação, essa parcela da população, já vulnerável, será a mais impactada nesse período de crise que será longo.

Essa é a opinião da cientista social formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) e doutoranda em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Campinas (Unicamp), Juliane Furno, que também é militante da Consulta Popular e, atualmente, trabalha como assessora parlamentar na Câmara Federal.

De acordo com a pesquisadora, existem dois motivos que explicam essa crise, que tende a ser mais profunda que a de 1929 e 2008. Um deles é conjuntural, ou seja, explica-se pela diminuição da demanda de petróleo causada pelo coronavírus. O outro, entretanto, tem origem nas respostas que os Estados nacionais deram à crise financeira que explodiu em 2008.

“Desde 2008, a resposta dos governos tem sido aumentar a base monetária, ou seja, expandir a oferta de moedas para não diminuir tanto o consumo. Aumentando a capacidade na oferta de moedas e diminuindo as taxas de juros, os investidores optam por investimentos no mercado financeiro. Com isso, a gente tem, na verdade, uma grande bolha financeira”, explica.

Diante desse cenário, a projeção da cientista social é de crescimento negativo na economia de todos os países neste ano. No Brasil, a situação não é diferente. Mas, para sair dessa crise, Furno acredita que o governo não pode se limitar a políticas fiscais.

“Essa política monetária de injetar dinheiro e diminuir a taxa de juros tem que ser concomitante a um aumento da política fiscal. Ou seja, é o Estado que precisa gastar. E, principalmente, gastar em setores mais críticos como a saúde”, opina.

Confira a entrevista completa:

Bolsas do mundo inteiro enfrentam quedas significativas desde o início da semana passada, devido à desaceleração da economia ocasionada pelo coronavírus. Qual a gravidade dessa crise e quais as disputas econômicas que estão colocadas atualmente?

Juliane Furno – A crise que nós estamos vivendo, provavelmente, será mais profunda que a de 1929, ou que a de 2008. As economias mundiais demorarão um pouco mais de tempo para retomarem o padrão de crescimento. A diferença é que a crise de 1929 foi causada por um excesso de produção, que não tinha lastro no consumo, e a crise de 2008 foi criada da esfera financeira para a economia real. Já a crise atual não teve um fator endógeno, não é uma crise no sistema capitalista. Ela ocorreu por uma queda de demanda e de oferta de produtos. Embora a previsão seja de recuperação mais lenta, essa crise terá uma resolução mais fácil, que é a volta à normalidade.

As bolsas têm caído por alguns motivos. O mais conjuntural tem a ver com essa nova crise do petróleo, que caiu fortemente porque, como qualquer outra mercadoria numa economia de livre mercado, é precificado pela oferta e pela procura. Houve uma queda na procura, ocasionada, principalmente, pelos cancelamentos dos voos e pela restrição de deslocamentos. A Arábia Saudita, e a OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo] de uma maneira geral, propôs um acordo com o governo russo para diminuir a produção, com o objetivo de normalizar a oferta e, consequentemente, estabilizar o preço do barril a US$. A Rússia, ao não topar esse acordo, fez a Arábia Saudita ter uma ação reativa e ampliar a sua produção para garantir que ela continuasse tendo ofertas de mercado. A Arábia Saudita, hoje, tem condições controlar o preço do petróleo sozinha, na medida que tem capacidade de produzir 13 milhões de barris por dia. Ao diminuir drasticamente o preço do petróleo, o valor dos ativos das empresas petrolíferas também cai, e essa é uma discussão interessante. Porque o que cai é o valor de mercado.

A Petrobrás perdeu R$ 74 bilhões em “valor de mercado” apenas no primeiro dia de queda do preço do barril internacional de petróleo. Quais as consequências reais dessas perdas?

A Petrobrás passou a valer menos 30% em 30 minutos de funcionamento da bolsa [Bolsa de Valores de São Paulo]. Mas isso não tem nenhum impacto em termos financeiros para a estatal, é apenas um impacto contábil. Essas empresas têm os ativos e o valor de mercado precificados, em grande medida, no barril do petróleo e na capacidade de converter reservas provadas em reservas comerciais. Por isso, as bolsas caíram porque grande parte das ações é dessas empresas, que são precificadas a partir dos preços dos petróleos. Se o preço do petróleo cai, as pessoas querem se desfazer dos ativos dessas empresas e aí elas vendem ações. Como a oferta de ações se torna muito alta no mercado, e a demanda é baixa, o preço cai.

Isso não tem muito impacto na vida do cidadão comum. Porque ainda que tenha aumentado um pouco a procura individual no mercado financeiro, esses ativos de renda variável estão nas mãos de uma pequena parcela da população. Então, concretamente, pouco importa a bolsa e os ativos das grandes empresas para o cidadão. Mas isso não deixa de ter uma repercussão econômica, obviamente.

A atual política econômica, mesmo se classificando como liberal, tem sinalizado com contribuições ao setor privado. Qual a sua opinião sobre essa movimentação?

É engraçado que esse ideário do mercado financeiro, de que o Estado não pode intervir na economia, cai totalmente por terra na medida que o governo precisa entrar no jogo para socorrer seus agentes [do mercado financeiro], para eles não perderem mais liquidez.

Existem causas que contribuíram para a atual crise econômica que vão além das consequências do coronavírus?

Além do motivo conjuntural que levou à crise, citado anteriormente, existe também um fator mais profundo que se remonta à última crise econômica mundial. Desde 2008, a resposta dos governos tem sido aumentar a base monetária, ou seja, expandir a oferta de moedas para não diminuir tanto o consumo. Aumentando muito a capacidade na oferta de moedas e diminuindo as taxas de juros, os investidores optam por investimentos no mercado financeiro. Com isso, a gente tem, na verdade, uma grande bolha financeira ocasionada pela resposta dada à crise de 2008, o que também faz com que qualquer variação na bolsa cause uma variação real muito grande, porque tem muito ativo na bolsa atualmente. Mas volto a reafirmar que isso não tem muito impacto na vida do cidadão, já que é mais um impacto financeiro.

Entretanto, na conjunção de um processo de desaceleração mundial, queda no preço do petróleo e a pandemia do coronavírus, intensifica-se o processo de crise que vai levar todas as economias a terem crescimento negativo nesse ano. Essa é minha aposta. Mesmo a economia chinesa, provavelmente, terá crescimento negativo. Porque existe uma crise de demanda, as pessoas não saem às ruas, não consomem, elas não pegam transporte, elas não viajam.

O Brasil tem 41% de trabalhadores informais, além de pequenos empresários e micro empreendedores individuais. Com o isolamento para evitar o coronavírus, essa parcela da população ficará totalmente vulnerável. Quais medidas poderiam ser tomadas para diminuir ou minimizar esses danos?

Os trabalhadores informais são os que mais sofrem com relação à crise atual, porque eles não podem vender suas mercadorias, não podem dar aula particular, não podem dirigir Uber. E, por outro lado, mesmo se continuarem com essas atividades, o risco de contraírem o coronavírus e não terem um auxílio para se tratarem em casa é muito grande. Eles são vítimas dos dois lados, tanto por deixarem de vender, como também por não terem assistência para ficarem em casa ou para se tratarem no caso de contraírem a doença.

É emergencial um projeto do governo de transferência de renda para esses trabalhadores autônomos informais, como também para os micro empreendedores individuais. É urgente uma política de transferência de renda para que essas pessoas não diminuam sua capacidade de consumo, e para que o problema individual não se torne um problema coletivo grave. Se elas não tiverem dinheiro não consumirão e, provavelmente, ajudarão outros estabelecimentos a quebrarem.

O ministro da economia, Paulo Guedes, anunciou um pacote que prevê a injeção de R$ 147 bilhões na economia brasileira para o combate ao coronavírus. Qual a sua avaliação sobre essas medidas?

Esse pacote de injeção de R$ 147 bilhões na economia é uma política importante. Mesmo o governo liberal do Paulo Guedes entende que o Estado precisa agir em um momento como esse. Mas essas políticas monetárias, ou seja, de injetar dinheiro ou diminuir a taxa de juros, têm um limite. As pessoas podem ter dinheiro e circulação e não necessariamente gastar. Então, quem tem que gastar atualmente é o Estado. Por isso, essa política monetária de injetar dinheiro e diminuir a taxa de juros tem que ser concomitante a um aumento da política fiscal. Ou seja, é o Estado que precisa gastar. E, principalmente, gastar em setores mais críticos como a saúde. A PEC 95 limita os gastos com a saúde, mas o governo pode, sem reaver essa política, aprovar créditos extraordinários para o SUS [Sistema Único de Saúde]. Porque ao gastar ele movimenta a economia.

O governo federal já editou uma portaria que autoriza o uso de força policial contra quem descumprir medidas em relação ao coronavírus. O Estado pode se aproveitar da atual situação de calamidade para implementar medidas autoritárias?

Eu acho que a gente tem possibilidade de entrar num Estado de exceção, sem querer ser alarmista. Esse Estado apocalítico que nós estamos vivendo reúne condições favoráveis, com uma base social pré-disposta a fechar o Congresso e STF [Superior Tribunal Federal], para que o governo emita medidas mais autoritárias. O Estado pode se utilizar dessa política de contenção do contágio do coronavírus para reprimir e criminalizar organizações políticas e indivíduos. Eu acho que esse é um risco que a gente está correndo.

O que essa crise pode trazer de lições? Como os movimentos populares, sindicais e partidos de esquerda podem atuar nesse cenário?

A lição é que o Estado, em última instância, é o principal agente da economia. A gente tem vivenciado várias situações que comprovam isso. O próprio desabastecimento dos mercados e a inflação que provavelmente voltará a subir são provas da necessidade de um Estado que controle o preço das mercadorias básicas e que regule os mercados. A gente não pode prescindir do Estado, de um regulador que olhe primeiro para a vida da população e não para a vida das empresas.

Via Sindipetro Unificado de São Paulo