Por William Nozaki, professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas para o Setor de Óleo e Gás (GEEP/FUP)
O gás natural pode ser considerado um combustível fóssil mais nobre do que outros hidrocarbonetos em termos ambientais, dado que emite menos poluente quando de sua utilização. Entretanto, sua participação na matriz energética brasileira responde por pouco mais de 10% da oferta primária de energia no Brasil, a média mundial é de cerca de 25%.
Ainda assim o mercado brasileiro é bastante robusto: são 3.050 clientes industriais, 36.122 clientes comerciais, 26 distribuidoras (a Petrobras tem participação em pelo menos 20 delas), 440 municípios e 3.060.213 residências atendidas com 53.93 milhões de metros cúbicos/dia de gás natural consumidos das distribuidoras, tudo isso sem considerar o potencial de expansão desse mercado., pois Oo gás natural canalizado está presente em apenas 470 das 5570 cidades do país e atende 3 milhões de residência num total de 68 milhões de domicílios brasileiros, onde o gás natural não chega se recorre ao uso do gás de botijão (GLP), segundo os dados são da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás).
No caso do Brasil, onde as reservas são predominantemente marítimas, um dos principais obstáculos para o desenvolvimento do mercado de gás situa-se justamente na logística, no transporte e na distribuição.
Do ponto de vista da oferta, os núcleos produtores estão distantes dos centros consumidores de modo que o custo logístico impacta fortemente a composição do custo total de produção do gás. A oferta de gás natural no Brasil é composta pela produção nacional, pela importação via gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol) e por compras em menor quantidade de países como Argentina, Espanha, Nigéria e Catar.
Do ponto de vista da demanda, para que haja viabilidade no investimento em malhas dutoviárias torna-se fundamental a existência prévia de grandes consumidores tornando justificável o investimento. A demanda de gás natural no Brasil, por seu turno, busca atender os mercados industrial, comercial, residencial, automotivo, de co-geração e de termelétricas. pilares para o desenvolvimento do setor de gás está na atuação e coordenação do poder público. Levando-se em consideração que
Além disso, no nosso caso, mais três observações merecem destaque: (i) 67% da produção diz respeito ao chamado gás natural associado, ou seja: gás e petróleo que via de regra situam-se nos mesmos campos e reservas; (ii) mais ainda, uma parte significativa da finalidade do gás produzido tem como objetivo complementar a produção da energia hidrelétrica, dada a sazonalidade e a variação desta última; e (iii) por fim, do ponto de vista da distribuição do gás natural aos consumidores finais, a regulação é feita em âmbito estadual,. entende-se Daí o papel preponderante da Petrobras, da Eletrobras e dos entes federativos nesse setor.
Enquanto a Petrobras detém boa parte dos gasodutos de transporte e é sócia de parte importante das distribuidoras de gás canalizado, a Eletrobrás detém 114 termelétricas movidas a gás natural, óleo e carvão. Como cada estado dispõe de entes e regras específicas para a concessão do serviço, a regulação estadual acaba afetando de formas variadas o investimento e a tarifa.
Em 2012 a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) realizou o Zoneamento Nacional de Recursos de Oléo e Gás, o estudo destacou a existência de diversas bacias de gás, associado ou não-associado ao petróleo, são elas: em terra, Amazonas, Paraná, Parnaíba, Santos e Tucano Sul; em mar, Ceará, Camamu-Almada, Espírito Santo-Mucuri, Potiguar e Sergipe-Alagoas.
À luz do novo zoneamento, em 2014, a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) propôs o Plano Decenal de Expansão da Malha de Transporte Dutoviário (PEMAT). A partir desses dois instrumentos o Ministério de Minas e Energia (MME) passou a propor a construção e a ampliação dos gasodutos brasileiros, estimulando estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental das diversas possibilidades de empreendimentos a serem realizados no setor.
Além disso, a política de gás tinha como objetivo articular essas novas iniciativas a um arcabouço regulatório baseado no modelo de partilha, no aumento da participação da União no gás produzido, na ampliação dos royalties e das participações especiais e pagamentos pela ocupação e retenção das áreas. Muito embora, cabe destacar, a política de preços administrados da gasolina e da energia elétrica, por exemplo, tenham impactado negativamente as contas das estatais do setor de energia, o que acabou por estimular direta ou indiretamente a venda de ativos como a Gaspetro, que em 2014 teve 49% das suas participações vendidas para a japonesa Mitsui.
No entanto, o aprofundamento da crise econômica, política e institucional que desaguou na troca brusca de governo em 2016 substitui de forma ainda mais contundente e acelerada a lógica do planejamento estratégico e do investimento de longo-prazo pela dinâmica da desnacionalização desregrada e do desinvestimento curto-prazista, o que fica claro nas diretrizes do novo plano “Gás para Crescer”, onde os princípios de auto-suficiência e sustentabilidade são substituídas pela priorização da atração de investidores externos e pela diversificação de agentes que atuam no setor. Somados a isso, o desmonte em curso da Petrobras e o desmanche anunciado da Eletrobras certamente tem trazido impactos problemáticos para o setor. Vejamos alguns deles.
No que se refere à Petrobrás, a decisão de desinvestimentos apresentada no Plano de Negócios e Gestão (PNG-2017-2021) desde seu início tem afetado o setor de gás: a estatal Liquigás foi vendida para a concorrente Ultragás; 90% da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) foi vendida para a canadense Brooksfield; foram também privatizados dois Terminais de Regaseificação, o da Bacia de Guanabara (RJ) e o da região de Pecém (CE).
Além disso, há estudos de viabilidade em andamento para a privatização da Nova Transportadora do Nordeste (NTN) e da Transportadora Brasileira do Gasoduto Brasil-Bolívia (TBG).
No que se refere à Eletrobrás, há ainda muitas dúvidas com relação à privatização anunciada recentemente, mas é certo que tal pacote pode afetar parte das 114 térmicas abastecidas com gás natural, ainda que não esteja clara a própria viabilidade das vendas.
No que se refere aos estados, com exceção das distribuidoras do Rio de Janeiro (CEG e CEG-Rio) e de São Paulo (Comgás e Gás Natural Fenosa), todas as demais tem capital e controle estatal, via de regra os governos estaduais detém 51% das ações com direito a voto e o restante pertence ou à Gaspetro ou à Mitsui, além de contarem com a participação de diversos sócios minoritários.
No âmbito do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) do governo federal há ainda a indicação de que o BNDES deve financiar a privatização de sete distribuidoras estaduais de gás natural: Copergás (PE), Gás Natural (ES), Sulgás (RS), SCGás (SC), MSGás (MS), PBGás (PB) e Potigás (RN), todas com leilões previstos para o terceiro trimestre de 2018. Entretanto, a instabilidade política e a aproximação do calendário eleitoral podem trazer recuos e reveses nas decisões de privatização dos governadores.
O clima de incerteza pode afetar um dos nossos maiores gasodutos, o Brasil-Bolívia. O Gasbol tem cerca de 3.150 km de extensão, no lado boliviano 557 km ligam o povoado de Rio Grande à Cidade de Porto Suarez, no lado brasileiro 2.593 km ligam a cidade de Corumbá (MS) à cidade de Canoas (RS), passando por Mato Grosso do Sul, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A possível privatização de distribuidoras estaduais no centro-sul somadas ao fim do contrato de fornecimento de gás natural pela Bolívia, que expira em 2019 pode trazer turbulências para o setor.
A despeito do setor de gás ser estratégico para o país, o desmonte segue acelerado. O governo Temer pretende levantar entre 2017 e 2018 US$ 21 bilhões com ativos vendidos da Petrobras e US$ 20 bilhões com ativos vendidos da Eletrobras a fim de gerar caixa e cobrir um déficit público estimado em cerca de R$ 159 bilhões no biênio 2017-2018, segundo o Banco Central do Brasil. Embora o governo justifique o desmonte como uma forma de elevar a eficiência do setor, t
Tais medidas não necessariamente criam melhoria dos serviços para a população: do ponto de vista do preço, depois da privatização da Liquigás, só em setembro deste ano o gás de cozinha sofreu dois reajustes, de 12,2% e de 6,9%, além disso, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) já anunciou o aumento de 3,3% a partir de novembro na tarifa de energia. Do ponto de vista da qualidade, também não há nenhuma garantia de melhora, vale registrar que nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro onde o serviço de gás já é privado, as companhias do setor figuram no topo do ranking de reclamações no Procon das duas cidades. Nesse ponto, é interessante ressaltar que o aumento de eficiência do setor passa muito mais por melhorias nas condições de oferta e por incentivos estatais na produção em terra. Quem afirma isso inclusive é o IBP, instituto que representa os interesses do empresariado do setor. “A produção de gás em campos onshore pode contribuir para a ampliação da disponibilidade do combustível no país, por ser uma fonte mais barata do insumo, mas depende ainda de uma política de incentivo”. Ademais, os núcleos produtores estão distantes dos centros consumidores de modo que o custo logístico impacta fortemente a composição do custo total de produção do gás, por isso, outra medida importante seria no investimento da infraestrutura necessária para conectar esses centros à produção de gás. ; do ponto de vista do emprego, somado aos reveses da já aprovada reforma trabalhista que entre efetivamente em vigor a partir de novembro, é muito improvável que haja melhoria e ampliação nos postos de trabalho bem como na remuneração, na Petrobras onde a privatização já teve início há uma queda de cerca de 5% no número de postos de trabalho. A desestatização e a desnacionalização do gás compõe mais um dos capítulos da conversão do patrimônio público em riqueza privada no Brasil atual.