Rede Brasil Atual
Em sua casa, no assentamento Praialta Piranheira, a 100 quilômetros de Marabá, Laísa recolhe objetos. A cesta artesanal de colher castanhas, de Zé Cláudio. O chapéu de Maria. Os sapatos que usavam quando foram mortos. Uma receita de como fazer óleo de andiroba, manuscrita e emoldurada. Colares de sementes e frutos da floresta, que Maria fazia — um deles com as letras ZC e M formadas por sementes brancas. Era segunda-feira, dia 1º de abril de 2013, e Laísa se preparava para ir a Marabá para acompanhar o julgamento de três pessoas acusadas pelo assassinato de José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo. Laísa é a irmã mais nova de Maria.
Os acusados são José Rodrigues Moreira, Lindonjonson Silva Rocha e Alberto Lopes do Nascimento. Eles serão julgados a partir desta quarta-feira (3) por homicídio qualificado. Zé Cláudio e Maria foram mortos de emboscada, em uma ponte precária de um dos seis igarapés que correm no assentamento onde moravam. Estavam a caminho de Marabá, em uma motocicleta. O assassinato foi em 24 de maio de 2011 – depois de anos de ameaças porque os dois denunciavam a derrubada ilegal da floresta, para retirada de madeira e a feitura de carvão. Viviam do extrativismo, combatiam o desmatamento para a formação de pastagens e a criação de gado.
Laísa mora no assentamento onde o casal e os acusados – presos há dois anos – também viviam. O motivo do crime: José Rodrigues teria comprado, por R$ 100 mil, um lote no local, onde não se pode vender e comprar terra. Praia Alta Piranheira é um assentamento da reforma agrária. Em seu depoimento, Rodrigues diz que pagou pelas benfeitorias que havia no local. O irmão, Lindonjonson, afirma que ele pagou pelos “direitos da terra”. José Rodrigues queria expulsar três famílias que ocupavam o lote e criar bois. Zé Cláudio e Maria apoiavam essas famílas. E por isso foram mortos. Ou, contra-argumentam os advogados de defesa dos acusados, porque madeireiros e carvoeiros, que os ameaçavam há tempos, decidiram finalmente colocar um ponto final em sua história.
Laísa deveria ser levada à cidade pela polícia porque é ameaçada de morte. Mas houve um assalto na cidade e a única viatura existente está quebrada. Então ela vai em um carro da Comissão Pastoral da Terra. Os objetos que recolhe devem fazer parte de um memorial em homenagem a Zé Cláudio e Maria.
Em Marabá, militantes dos movimentos de reforma agrária da região, jornalistas de todo o Brasil e do exterior estão chegando para acompanhar o julgamento. São esperados cerca de 500 manifestantes. O juiz encarregado do processo, Murilo Lemos, da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, afirmava, até a tarde de hoje, que não permitirá a filmagem do julgamento nem sua transmissão. E que os acessos a familiares, advogados, estudantes e imprensa se limitarão a 90 pessoas, a capacidade do fórum. Apenas dez das credenciais serão dadas a jornalistas. O comandante da Polícia Militar da cidade pediu uma reunião com os movimentos, na manhã do dia 1º, e decidiu reforçar a segurança, com receio de manifestações.
O julgamento será realizado em uma região de conflitos violentos por posse da terra e onde a bandeira da reforma agrária está em processo de desconstrução, afirma José Batista Gonçalves, advogado da Comissão Pastoral da Terra. “A reforma agrária e a agricultura familiar não são prioridades do governo. O modelo de desenvolvimento em que ele aposta é o da monocultura e do agronegócio, que visa o mercado externo, a exportação.” De acordo com Batista, nos 90 e início dos anos 2000 foram realizados cerca de 400 assentamentos na região. E nos últimos quatro anos, menos de 30. Nos assentamentos que existem, não há apoio do governo federal e os conflitos continuam. Batista faz parte da bancada de acusação contra os réus do julgamento de amanhã. “Este júri tem um papel importante porque trata do combate à impunidade. E a impunidade é uma das principais causas da existência da violência no processo de acesso à terra pelos povos da floresta.”
Para os advogados de Lindonjonson e de José Rodrigues, o julgamento e sua repercussão fazem parte de uma conspiração para promover o interesse internacional sobre a Amazônia. “O Pará é famoso em conflitos fundiários, mas este caso tomou uma proporção muito grande”, afirma Wandergleison Fernandes, um dos advogados. “Quando esse crime específico tem como motivação a proteção ambiental, cria-se na comunidade internacional o boato de que o Brasil não tem competência para administrar a Amazônia. E este boato vai se espalhando de tal forma que o Brasil começa a receber pressões para que a Amazônia seja internacionalizada”, raciocina ele.
A estratégia da defesa será desqualificar a posição de Zé Cláudio e Maria como defensores da floresta. A da acusação, de demonstrar por meio de provas testemunhais e técnicas que os responsáveis são os acusados. Para Laísa, trata-se de fazer Justiça em relação ao assassinato de sua irmã e cunhado.
Os advogados dos acusados, em entrevista ontem, afirmam que esta homologação provou, de maneira indireta, a correção da posição de seus clientes. Para Laísa, ameaçada de morte, isso significa somente uma coisa: mais ameaças. A cada árvore derrubada e a cada vistoria do Ibama na área, a cada multa por fabricação de carvão, vizinhos irados a culpam. “Quem denunciou foi a Laísa”, é o que se diz ali – e o que chega aos ouvidos dela, com mais ameaças. Se a homologação não for confirmada, Laísa será tomada como responsável. Se for, a terra vai para as mãos de quem será julgado pela morte de sua irmã. O medo ainda existe em Praia Alta Piranheira. Ainda que a impunidade, neste caso, não aconteça – isso só o julgamento dirá – a omissão e os erros do Estado colocam em perigo quem luta por terra na região.
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