Chávez, mito que faz!

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Gilberto Maringoni é jornalista, ilustrador e articulista da Carta Maior

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Hugo Chávez surgiu na cena política como um personagem atípico, num momento atípico.

Seu desaparecimento, mesmo para os que o combatem, representa um acontecimento de primeira grandeza na política continental. No dia de sua morte, mesmo a grande imprensa venezuelana o tratou com respeito, coisa que alguns analistas midiáticos brasileiros não tiveram o equilíbrio de fazer.

A vida política do ex-tenente-coronel nunca foi fácil.

Quando irrompe no cenário de forma abrupta, tentando derrubar um governo desacreditado, em 1992, a resolução última dos problemas políticos estava assegurada pelo livro O fim da história e o último homem, do sociólogo norte-americano Francis Fukuyama. Sua tese principal era a de que o capitalismo e a democracia liberal representam o ápice da passagem da humanidade pela Terra.

Não haveria espaço para qualquer alternativa ao receituário vigente, tanto no terreno da política, quanto no da economia. Possíveis mudanças sociais seriam, dali por diante, gradativas e sem sobressaltos de monta.

O livro ganhou manchetes e Fukuyama tornou-se celebridade instantânea.

A utopia desutopizada
Dois anos depois, quando Chávez era anistiado por sua ação, o mundo político latinoamericano discutia o novo sucesso na praça. Era o recém lançado A utopia desarmada, do cientista político mexicano Jorge Castañeda, posteriormente Secretário de Relações Internacionais do governo conservador de Vicente Fox (2000-2006). Nela, o autor escreveu que

“A (…) idéia de revolução, durante décadas crucial para o pensamento radical latino-americano, perdeu seu significado. (…) A idéia de revolução murchou porque seu resultado tornou-se indesejável ou inimaginável”.

Publicados simultaneamente em vários países, os livros fizeram a festa dos setores conservadores e de parcela da esquerda que transitou para a direita. Ali estavam sistematizadas uma suposta teoria e uma justificativa racional para a implantação das doutrinas ultraliberais, que possibilitariam um transformismo sem culpas de setores outrora progressistas. Revolução tornara-se um conceito banido não apenas da pauta política, mas dos estudos acadêmicos.

Chávez teve vários méritos, entre eles, o da ousadia. Pode-se não gostar dele, de sua eloqüência abrasiva e de suas opções políticas. Mas não se pode desdenhar sua imensa capacidade de surpreender.

Quando chegou ao palácio de Miraflores, em janeiro de 1999, revolução era um conceito tido como obsoleto. A queda do muro de Berlim, em 1989, a derrota eleitoral dos sandinistas na Nicarágua, em 1990, o desmanche da União Soviética, em 1991, e a supremacia do modelo neoliberal em quase todo o mundo, acuaram as forças que pregavam mudanças na ordem social. A própria idéia de revolução, no sentido de uma transformação radical da realidade, foi colocada em xeque.

Desconheço o alcance das perorações de Fukuyama e Castañeda na Venezuela de duas décadas atrás. Mas a audácia presidencial foi exibida não apenas em seus atos iniciais, mas ao recolocar na agenda política a palavra maldita. Revolução foi um tema central na ofensiva desencadeada a partir de Miraflores, o palácio de governo. Trata-se de uma luta política e ideológica de envergadura, como se dizia em outros tempos.

Memória e esquecimento
Poucos se lembram hoje de quem eram esses arautos de um determinismo às avessas, que decretava não haver mais mudanças no rito pré-traçado pela economia de mercado.

E mais: ao ver as convulsões sociais e políticas que tomam conta de Portugal, Grécia, Itália, Espanha e outras partes da Europa, não há como não rir de sentenças como a do ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso de que viveríamos nos anos 1990 um “novo Renascimento”.

Chávez não apenas recuperou conceitos – como revolução e socialismo – mas os transformou em ações concretas. Aos que reclamam de seu estilo muitas vezes exagerado, convém olhar para o outro lado, para os exageros do cataclismo social que as administrações “responsáveis” levaram a Venezuela nos anos 1980-90.

Chávez é fruto do descontentamento, da insatisfação, da raiva e do inconformismo popular. São sentimentos profundos, assim como é a legitimidade por ele adquirida ao longo dos anos.

A direita venezuelana não entendeu isso num primeiro momento e achou que o tiraria do poder com um golpe de mão, em 2002. Não apenas não o removeu, como fortaleceu sua presença na cena pública.

Avis rara
O Comandante foi de início um animal exótico. Não fazia parte de uma geração de líderes com talha semelhante. Não era como Fidel, que cresceu na cena internacional do pós-Guerra, na esteira dos movimentos de libertação nacional. Ali se criaram as condições para o aparecimento de dirigentes terceiro-mundistas como Gamal Abdel Nasser, Ahmad Ben Bella, Nelson Mandela, Patrice Lumumba, Samora Machel, Agostinho Neto e outros. Fidel, fruto da mesma ninhada histórica, é talvez o mais brilhante de todos, mas um entre os demais.

A ninhada de Chávez – uma vaga política antiliberal, para usarmos um termo mais douto – apareceu depois dele e muito por causa dele. Embora tenham personalidade própria, Lula, Evo Morales, Rafael Corea, Cristina Kirchner e Pepe Mujica mostram que a Venezuela deu a largada para uma nova quadra histórica continental.

Ao ganhar as eleições em 1998, o venezuelano foi tido como produto exótico de um país que se considerava uma excepcionalidade na América Latina, por força de sua economia solidamente ancorada na renda petroleira.

O que era exceção tornou-se uma tendência que tem mostrado notável fôlego político.

Chavismo do século 21
A pergunta que fica é se haverá um chavismo sem Chávez. Melhor dizendo: as transformações sociais e políticas na Venezuela continuarão sem a presença de seu líder em um país historicamente dependente de um único produto, o petróleo?

Seu primeiro teste será o desempenho de Nicolas Maduro nas eleições que devem ocorrer dentro de um mês. Sua vitória, para a continuidade do chavismo, precisará não apenas acontecer, mas a diferença de votos com seu opositor será o termômetro dos rumos futuros.

Em termos pessoais, Maduro demonstrou como parlamentar e ministro das Relações Exteriores ter capacidade de sobra para assumir o comando. Ele não é Chávez e não há ninguém na Venezuela que possa ombrear-se. Mas a vida seguirá e Maduro terá a tarefa imensa de se legitimar num ambiente pressionado por urgências de toda ordem.

Chávez está liberado para se tornar mito. Mas também será um mito excepcional, um mito concreto e palpável, muito diverso das criações da metafísica, por sua influência decisiva e possivelmente longa no futuro venezuelano.

Chávez, tudo indica, também será um mito exótico. Chávez será mito que faz.