Washignton Araújo é jornalista, escritor e editor do blog http://www.cidadaodomundo.org
O momento em que Bento XVI sai de cena coincide com o ponto mais baixo em que a influência das religiões tradicionais parecem entrar em rápido declínio. A resistência às mudanças em um mundo e em uma época que têm na própria mudança sua maior e mais momentosa característica destaca-se em alto relevo na presente crise que engolfa o Trono de Pedro. Precisou que se passassem 600 anos para que uma geração testemunhasse evento tão incomum e tão insólito – o Chefe da cristandade católica pediu demissão, renunciou, anunciou que deixaria de usar as sandálias do Pescador, seu cetro e seu anel.
A Igreja Católica, em sua tradição pétrea de manter ritos e dogmas, em sua quase constante incapacidade de manter o foco na vida do Espírito e deixar aos demais as questões humanas mais comezinhas, como regulação dos meios de procriação até ao nunca perdido hábito de buscar influenciar na eleição de governantes em muitas nações com maioria da população católica (ou não), vem de uma série de conflitos internos e externos. Dentre os internos, as correntes antagônicas que se dividem entre conservadores e liberais, entre os que defendem o celibato e os que lutam por seu término, os que admitem o uso de preservativos em relações sexuais e os que vêm como prática diabólica, convite direto a atos pecaminosos, os que lutam por justiça social para a vasta maioria da humanidade que sobrevive em condições de penúria e miséria e aqueles que abominam uma igreja politizadas e secularizadas.
História de erros colossais como o de se levantar em copas contra o Iluminismo, as descobertas científicas e seus expoentes. História de Guerras Santas e de Inquisições nada santas, com milhares de mortos. História de conflitos entre viver o evangelho de Cristo na saudável proposta de Francisco de Assis e a de acumular bens terrenos, de onde desponta como a maior imobiliária do planeta e em franca atividade (onde estão os metros quadrados mais valorizados de qualquer cidade ocidental, seja Roma, New York, Berlim, Londres, Rio de Janeiro ou Paris?); onde se encontram as obras de arte mais impressionantes e valiosas jamais produzidas pelo engenho e talento humanos (produzidas por Michelangelo, Leonardo da Vinci, Giotto?); onde existe no mundo atual instituições (Igrejas, Conventos, Mosteiros, Universidades, Hospitais) e profissionais (cardeais, bispos, núncios, monsenhores, padres, missionários) que gozem de amplos benefícios fiscais, financeiros e diplomáticos, salvo àquelas e àqueles chancelados pela Igreja Católica Apostólica Romana?
História de pesadas cortinas de silêncio: seus mais proeminentes pensadores foram amordaçados em longos processos correndo por décadas na Congregação para a Doutrina da Fé, nome atual do antigo Santo Ofício. Gustavo Gutierrez, Hans Küng, Leonardo Boff, Oscar Romero e tantos outros podiam pensar apenas para si mesmos, mas nunca divulgar os frutos de seu pensamento. Característica comum entre todos eles: ouvir o clamor dos condenados da Terra, dos povos africanos e latinoamericanos, dos imigrantes asiáticos, dos povos indígenas abusados em sua essência espiritual e desde então evangelizados a ferro e a fogo, como tantas vezes foi denunciado pelo clérigo Bartolomeu de Lãs Casas. Enfim, os silenciados foram nada menos que aqueles que teimaram vocalizar a dor dos que teimam em sobreviver com água pelo nariz, sempre um pouco abaixo da perversa linha da miséria. Ao mesmo tempo, estes amordaçados esculpiram suas opções sacerdotais como vigorosas vozes proféticas anunciando que o mundo é essencialmente plural, diverso, criativo, aberto às mais amplas emanações do Espírito e da espiritualidade. Ousaram denunciar que a Igreja de Cristo trazia a visão de um outro mundo, belo e justo, além de estar ao alcance de todos, e não apenas, ao gueto formado por ocidentais, de ascendência branca e européia que no leito dos séculos deitaram as regras e as normas de consciência e de conduta para parte expressiva da humanidade.
Chama a atenção outro fato: a luta incessante da Igreja pelo poder político – e temporal – ao longo de sua história e com ênfase especial nos dois últimos séculos.
Uma religião quando deixa ao largo sua função principal – a de saciar a fome por Deus, a de satisfazer os anseios por ‘uma Beleza Antiga, predita nos livros dos mensageiros por Quem se distinguirá a verdade do erro e se provará a sabedoria de todo o mandamento’ – e passa a se ocupar com os afazeres humanos, sua política, suas finanças, suas ideologias, termina nem cumprindo bem uma missão nem outra. Religião que esquece de religar o ser humano ao seu criador e decide religar seus muitos interesses humanos e materiais, não é religião, é uma fraude. Mais, o simulacro de uma fraude. Sempre que a religião quer educar em detrimento dos educadores, quer governar, em detrimento dos governantes, quer se apoderar de uma Verdade uma e única em detrimento do apreço às diferentes formas de pensamento e às infinitas visões de mundo, temos aqui o conflito original que desaguará na decepção e no desalento de boa parte de seus mais insignes pensadores. Religião que trombeteia mais do que efetivamente consegue personificar em atos, gestões e ações, deixa de ser fio condutor da experiência mística, do contato com o Sagrado. O Deus é o mesmo. E não importa se alguns o chamam de Téo ou Javé, Deus ou Alá, Tupã ou Oxossi. Não importa porque o Deus que existe é o que transcende rótulos, nomes e denominações e a todo servo fiel que O invocar, ele seguramente irá responder.
Religião não é partido político e muito menos organização não-governamental. Religião é tudo isso que nos re-conecta com o Etéreo, o Sagrado, o Místico, o Permanente. A Consciência Cósmica Universal. Religião que se preocupa mais com as ações nas bolsas de New York ou com a variação da Libor de Londres nunca encontrará tempo para se ocupar com os valores espirituais, eternos no passado, eternos no futuro. É como esperar que os especialistas em aquecimento global, os chamados “cientistas do clima” deixem de lado o derretimento das calotas polares e a desertificação acentuada de países asiáticos e passem a se ocupar com a alfabetização de crianças de 4 a 6 anos de idade.
A demissão de Bento XVI escancara a crise latejante de uma Igreja que se mostra incapaz de atender às necessidade espirituais de uma humanidade às voltas com graves desafios: o uso do poderio nuclear por duas dezenas de nações; a contaminação e exaustão dos recursos naturais do planeta; o perverso abismo a separar irremediavelmente ricos e miseráveis, sendo que 2/3 da população mundial facilmente podem ser chamados miseráveis vem abrir novas clareiras para mostrar à larga as guerras internas pela posse do Anel do Pescador:
(a) expulsar uma minoria de clérigos pedófilos, acusados de abusar de centenas de crianças em uma dezena de países ou… acobertar as terríveis ilicitudes, deixando tudo como está, e não remetendo os criminosos para enfrentar os rigores das leis civis?
(b) conceder transparência aos assuntos financeiros do notório Banco do Vaticano, afastando de suas práticas bancárias os negociatas com famílias mafiosas e da Cosa Nostra, e também, negócios com lojas maçônicas e outras sociedades secretas de raso respaldo moral… ou deixar as contas longe dos holofotes midiáticos, sugerindo a existência de corruptores e corrompidos, transitando livremente entre o religioso e o secular.
(c) dar adequada representatividade nas instâncias da administração do Vaticano e nas instituições da própria Igreja a sacerdotes egressos do terceiro mundo, onde vivem 52% da população católica mundial, em detrimento a um corte europeu e neoliberal que por muitos séculos representou à perfeição esta mesma faixa da população mundial. Atualmente, dos 118 cardeais aptos a eleger o sucessor de Bento XVI (ou seja que têm menos de 80 anos de idade) nada menos de 62 são de países europeus contra apenas 13 da América do Sul; são 17 na América do Norte contra 11 da África. Resumindo: a Europa tem um colégio eleitoral cardinalício que perfaz 53% dos votos do próximo conclave. Maior distorção? Sim, 56% dos cardeais votantes foram escolhidos por Bento XVI. Este é um outro problema: quando o corpo da Igreja se acha coeso e unido em torno de uma visão comum, tal fato em nada impacta decisão de tamanha envergadura. Mas não é o caso neste exato ano de 2013 da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. A verdade é que os detentores do ‘poder máximo’ dentro de uma religião organizada nunca deixam ponto sem nó, sempre encontram um jeito de influenciar sua própria sucessão. O que existe em comum é que nunca se admite agir dessa forma, seja qual for a denominação, tudo parece ocorrer por obra e graça do Espírito Santo. Nada mais.
(d) favorecer o ambiente propício a se avançar no diálogo macroecumênico da Igreja Católica com o judaísmo, o islamismo, a fé bahá´í, o budismo, o hinduísmo, a rica espiritualidade de origem africana, facilitando a compreensão cada vez mais evidente de que somos uma única humanidade, um único planeta e que temos um destino comum a partilhar enquanto espécie humana ou… proclamar novas fortalezas de exclusividade da Verdade, condenando a todos os demais serem eternos pagãos, destituídos dos bafejos do Espírito Santo.
A renúncia de Bento XVI está cercada por insondáveis mistérios, como aliás quase tudo que envolve a política do Vaticano. Os escândalos de pedofilia, os documentos pontifícios (VatiLeaks) vazados à imprensa pelo mordomo do Papa constituem um considerável abalo em sua credibilidade enquanto Instituição religiosa; a situação pré-falimentar de um potentado encravado no coração da Europa, estando este próprio continente engolfado em sua maior crise econômica e financeira formam um painel sombrio sobre a falta de sustentabilidade da máquina clerical; as várias trincheiras em que se digladiam correntes da Igreja, oscilando entre conservadorismo e liberalismo, tradição e secularismo; ordenação de mulheres; casamentos de pessoas do mesmo sexo, cada vez mais aceito por parlamentos de dezenas de países ocidentais; opção pelas elites políticas e econômicas do planeta e a adesão incondicional aos anseios das massas anônimas e vilipendiadas da humanidade, tais são as chagas que passam a sangrar com maior intensidade pós-decisão de Bento XVI.
Saiamos do presente e mergulhemos no passado.
Estamos numa quarta-feira de um hipotético mês de fevereiro do ano 41 d.C. Ao longe vemos um pescador reunindo seus muitos colegas de labor à sua volta. O pescador inicia assim o seu discurso: “Meus amados irmãos, este corpo cansado, estas mãos calejadas, estes olhos nublados e estes passos cada vez mais lentos já não mais me permitem seguir à frente na proteção das Boas Novas do Cristo e, sendo assim, anuncio que ao por do sol da terceira quarta-feira deste mês, deixarei minha função de vigário de Cristo para outro dentre vós.”
Observa-se o pescador se afastar. Ele balbucia: “É, deu. Já deu.”