No próximo dia 19 de maio, a Comissão de Auditoria das Concessões de Freqüências de Rádio e Televisão no Equador apresentará o seu ”informe definitivo” e as “recomendações” ao Ministério de Coordenação dos Setores Estratégicos e ao Conselho Nacional de R&TV sobre os dispositivos para democratizar o setor. A iniciativa é medular e joga na ofensiva contra os reiterados abusos de uma mídia que, lá como aqui, insiste em confundir liberdade de imprensa com a de empresa, tentando – de forma tão histérica quanto estéril – conter a primavera de mudanças que cobre o Continente.
No Brasil, atendendo ao clamor dos movimentos sociais e de uma necessidade histórica, o presidente Lula convocou a Conferência Nacional de Comunicação para os dias 1, 2 e 3 de dezembro, processo que estabelece pontos de contato com a linha do Equador, mas também apresenta seus nós, principalmente frente à disparidade dos instrumentos manipulados pela mídia hegemônica para pautar o debate.
A complexidade do desafio aponta para a necessidade das entidades, partidos e governos populares estreitarem cada vez mais seus laços e compreensões sobre o tema, qualificando sua intervenção e driblando obstáculos e cascas de banana lançados pelos que querem manter intocado o seu latifúndio, improdutivo do ponto de vista social, mas extremamente lucrativo, comercialmente falando. Romper o manto de silêncio que cobre este debate é, portanto, um passo essencial, neste momento.
Para conhecer de perto a experiência equatoriana, visitamos o país em meados de abril, compartilhando vivências e impressões com trabalhadores, técnicos e especialistas da área, o que fortaleceu nossa convicção da sua importância para os desdobramentos da luta política no país, bem como para o aprofundamento da integração e da própria democracia na América Latina.
Na avaliação do brasileiro João Brant, um dos “estrangeiros” que compõem a Comissão de Auditoria instituída pelo presidente Rafael Correa, a decisão equatoriana “aponta no sentido de acertar contas com graves ilegalidades ocorridas em passado recente, marcado pela extrema concentração de concessões públicas nas mãos do sistema financeiro”. Conforme Brant, que integra o Coletivo Intervozes, a definição de colocar em xeque as perversões dessa lógica mercantil “só foi possível pela nova Constituição, que estabelece claramente a separação dos poderes midiático e econômico-financeiro”. “O que podemos pegar de lição é que os equatorianos defendem o direito à comunicação como algo central para a democratização do Estado”, informou.
Conforme esclareceu o pesquisador e psicólogo Oswaldo León, da Agência Latino-Americana de Informação (ALAI), a auditoria equatoriana põe a nu a orgia de concessões realizadas entre 1995 e 2008, “o ápice do neoliberalismo, quando a entrega de freqüências, que são um bem limitado, se multiplicaram, de forma comprovadamente corrupta, com as privatizações sendo aprovadas por parlamentares que saíam do Legislativo com a sua concessão debaixo do braço”.
Como medida profilática, foi acertado que a auditoria determinará “a constitucionalidade, legitimidade e transparência das concessões, considerando os enfoques legal, financeiro, social e comunicacional”. A Comissão responsável por averiguar as irregularidades foi estabelecida por decreto no final de 2008, após a aprovação da nova Constituição, onde se “considera o espectro radioelétrico como um dos setores estratégicos que, por sua transcendência e magnitude, influi nos aspectos econômico, social, político e ambiental”, e se reserva ao Estado o direito de administrá-lo, regulá-lo e controlá-lo, “em conformidade com os princípios de sustentabilidade ambiental, precaução, prevenção e eficiência”.
De acordo com o parágrafo primeiro do artigo 17 da Constituição equatoriana, “o Estado deve garantir a liberação dessas concessões públicas através de métodos transparentes e em igualdade de condições, para a administração das emissoras de rádio e televisão públicas, privadas e comunitárias, assim como o acesso a canais livres para a exploração de redes sem fios, fazendo com que prevaleça o interesse coletivo”. O parágrafo terceiro determina que “será proibido o oligopólio e o monopólio direto e indireto da propriedade dos meios de comunicação e do uso das freqüências, e a participação no controle do capital, investimento ou patrimônio dos meios de comunicação social, de entidades ou grupos financeiros, seus representantes legais, membros da direção e acionistas”. Dando o tiro de misericórdia nos bancos, que são os donos diletos da mídia naquele país, os constituintes estabeleceram que os antigos beneficiários de concessões públicas que estejam em choque com tais determinações terão o prazo de dois anos para se desfazer delas a partir da entrada em vigência da nova lei – aprovada no final de 2008.
Como na maioria dos países da América Latina, no Equador, os meios se encontram concentrados em poucas mãos, “vindo a substituir os partidos da direita neoliberal, fracionados, debilitados e derrotados eleitoralmente”, lembrou o jornalista Eduardo Tamayo, integrante do Fórum Equatoriano da Comunicação. “No que diz respeito à televisão aberta, 19 famílias controlam 298 frequências das 348 existentes (86%). No campo da rádio a propriedade está menos concentrada, no entanto, as mesmas famílias concessionárias das freqüências de TV dominam grande parte das estações de rádio FM. Quarenta e cinco famílias detêm 60% das concessões de rádio AM e FM, que somam 1.196”. Porém, o mais escandaloso, advertiu Tamayo, “tem sido a relação incestuosa entre os bancos e a mídia, especialmente na televisão. Fidel Egas, um dos principais acionistas do maior banco do país (Banco del Pichincha) é proprietário da cadeia Tele Amazonas, que tem 43 concessões em nível nacional. Além disso, possui as revistas Gestión e Diners”. “Outro grupo econômico poderoso (El Juri – Banco del Austro) é proprietário da rede de televisão TELERAMA, beneficiária de 14 freqüências. Outros canais nacionais (Gamavision, Telecentro, Cablevision e várias rádios) que formavam parte de um grupo de 193 empresas de propriedade dos banqueiros foragidos William e Roberto Isaías, foram intimados no ano passado por terem endividado o Estado em 661 milhões de dólares”. Para Tamayo, “a concentração de meios em mãos dos bancos é um aspecto negativo para a democracia, pois se anula a diversidade informativa, os meios deixam de cumprir sua função social e passam a defender os interesses dos grupos econômicos que fazem parte”.
Na avaliação de Oswaldo León, um dos grandes avanços do processo equatoriano, “de vanguarda na democratização dos meios”, é que assume explicitamente a comunicação como um serviço social. “A política do neoliberalismo não se sustentava somente com o garrote imposto pela política econômica, mas pela base ideológica, buscando eliminar do imaginário social o sentimento de coletividade, de nacionalidade, afirmando o individualismo, o salve-se quem puder. Daí não haver nos grandes meios de comunicação espaço para o direito à réplica, condições para uma central sindical se contrapor a determinada medida antipopular. Na verdade, a mídia tentou eliminar toda e qualquer reflexão, acabar com a massa crítica”, acrescentou.
Para Oswaldo León, as ações que vêm sendo levadas a cabo pelo governo equatoriano, com o apoio dos movimentos que atuam pela democratização da comunicação, buscam pôr fim ao ”descalabro institucional generalizado”. “O governo não se deixou imobilizar, pois esta era a fórmula do sistema financeiro para inviabilizá-lo. Com apoio da ampla maioria da população, Correa acusa a mídia de mentirosa, citando exemplos de abusos e distorções que são fáceis de reconhecer. O desafio maior, agora, é que este seja um bem público apropriado pelo conjunto da sociedade”, declarou.
Logo após a maiúscula vitória de Rafael Correa e do Movimento Aliança País nas eleições do dia 10 de abril, pudemos constatar que os principais jornais e emissoras de rádio e televisão expuseram com toda a força seus interesses de classe, mantendo uma orientação esquizofrênica, como se nada tivesse acontecido. Pior, mobilizaram um batalhão de repórteres para pinçar todo e qualquer êxito parcial da oposição, tratando de transformá-lo em triunfo magistral. Ao mesmo tempo, “orientavam” o presidente, via editoriais e articulistas, a ter mais “calma” e “moderação” com o seu projeto socialista, já que o país saiu das urnas “dividido”. Na avaliação da mídia (anti)equatoriana, Correa fez “somente 52% dos votos”, embora tenha aberto margem de 24 pontos sobre o segundo colocado, que fez 28%. Vale registrar que a vitória não encontra paralelo em mais de duas décadas no país.
Diante desse padrão de comportamento, plugado à virtualidade dos desejos e aspirações das transnacionais, do sistema financeiro e dos vende-pátria, um primeiro dado importante a assinalar é a negação da realidade e de qualquer objetividade.
“Os meios de comunicação no Equador perderam muito de sua credibilidade nos últimos anos, em grande parte pela defesa que fizeram do modelo neoliberal e dos governos que o implementaram”, enfatizou a jornalista e escritora Sally Burch, diretora executiva da ALAI, lembrando que “o presidente Rafael Correa ganhou com folga as últimas eleições, mesmo tendo toda a mídia contra ele, em oposição frontal”. Reagindo à campanha midiática, explicou Sally, o presidente tem apresentado argumentos e fatos inquestionáveis, que acabam desacreditando constantemente o discurso monocórdico de jornais, rádios e tevês contra o governo.
A forma com que a mídia nega a realidade e se esmera em moldar no imaginário coletivo valores que atentam contra os interesses nacionais e populares foi uma das causas pelas quais na nova Constituição se esquadrinha o tema comunicacional. Conforme esclareceu Eduardo Tamayo, “os direitos à comunicação, à informação e à cultura se incorporam à Constituição no mesmo nível que outros direitos igualmente vitais para o ser humano como são a saúde, a educação, o bem-viver e outros”. Direito plenamente reconhecido para as pessoas, tanto em forma individual como coletiva, a “uma comunicação livre, intercultural, inclusiva, diversificada e participativa, em todos os âmbitos da interação social, por qualquer meio e forma, em sua própria língua e em seus próprios símbolos”.
Na avaliação dos movimentos pela democratização, se supera a visão limitada e instrumental da comunicação que a identificava como “meios”, resgatando a dimensão interativa e participativa da mesma, ou seja, “que as pessoas não somente têm direito a receber programas e serviços informativos, mas que também têm direito ao uso e acesso aos recursos da comunicação”. Para as diversas comunidades que compõem o país, se reconhece o direito a “criar seus próprios meios de comunicação social em seus idiomas e o acesso aos demais sem nenhuma discriminação”, garantindo que o direito à “dignidade e diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações” se reflitam na educação e na mídia.
Assim, de aplicar-se o espírito que prevalece na Constituição, este processo deve levar a que o Estado reverta as freqüências entregues irregularmente a meia dúzia de famílias e as destinem fundamentalmente aos setores públicos e comunitários, “a fim de romper o desequilíbrio atualmente existente”, esclareceu Tamayo. Segundo ele, “o desafio para universidades, organizações sociais e coletivos que aspiram contar com freqüências para criar seus próprios meios é enorme, pois não somente deverão dispor da infraestrutura e dos equipamentos necessários – recursos que sempre são escassos -, mas também deverão desenvolver políticas estratégias e capacidades profissionais e técnicas para operá-las”.
A invisibilidade a que é relegado o processo equatoriano e o seu inequívoco compromisso com a diversidade e a pluralidade – palavras malditas para o dicionário entreguista e desintegracionista da mídia hegemônica -, contrasta com a colcha de retalhos e mentiras que tecem seus donos para desqualificar a construção da democracia real no Continente. Afinal, crêem – e praticam diuturnamente seu fundamentalismo – que contra Lula, Rafael, Chávez, Evo, Lugo e Cristina vale tudo.