As incertezas da energia elétrica e a necessidade de diversificar as fontes

O economista Henrique Jager, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (INEEP), explica como a crise hídrica coloca luz sobre o importante debate das fontes da matriz elétrica nacional

[Por Henrique Jager, do INEEP]

O governo brasileiro editou a medida provisória 1.055, em 28/06/21, “que Institui a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG) com o objetivo de estabelecer medidas emergenciais para a otimização do uso dos recursos hidroenergéticos e para o enfrentamento da atual situação de escassez hídrica”[1]A energia elétrica produzida pelas hidrelétricas respondia por 61,89% da oferta primária de energia elétrica outorgada no país, em 03/08/21, tornando a situação delicada do parque hidrelétrico nacional, em razão do longo período de estiagem, uma séria ameaça à retomada do crescimento econômico do país, no último trimestre de 2021, dado o risco de faltar água para produzir energia.

De acordo com notícias publicadas na grande imprensa, a menor precipitação pluviométrica dos últimos 90 anos nas regiões sul e sudeste fez com que os reservatórios de algumas das principais hidrelétricas nacionais atingissem níveis críticos. Em última instância, o CREG pode ter que decidir se preserva a água existente nos reservatórios das hidrelétricas para produzir energia, reduzindo a vazão, ou se mantem a vazão, garantindo a oferta de água para as atividades produtivas, principalmente o agronegócio, mas colocando em risco a produção da energia.

A potência outorgada do parque elétrico nacional soma 226,94 GW, sendo que 78,82% em unidades já em operação, que é o potencial que o Sistema Nacional Integrado (SNI) conta para fazer frente a crise de curto prazo. Em um horizonte de prazo maior a tendência é que a dependência da energia hidráulica diminua uma vez que tanto as unidades em construção quanto as que as montagens ainda vão iniciar são majoritariamente de outras fontes de energia. A diversificação, ao diminuir os riscos, é uma boa notícia. Se toda a potência contratada for efetivamente construída a participação da energia hidráulica na matriz elétrica nacional vai cair dos atuais 62% para 49%.

As unidades em construção somam 6,08% da potência total outorgada. Em outras palavras, nossa capacidade de expansão da energia efetiva no horizonte de até 3 anos é de, no máximo, 6.08%. Esse percentual significa a entrada de 306 novas unidades nos próximos anos, destacando-se energia eólica, com 156 plantas; energia fotovoltaica, com 68 parques; e usinas termoelétricas, com 52 unidades em fase de montagem.  Esses empreendimentos totalizam 13,7 GW, distribuídos entre as plantas eólicas (EOL) 36,34%; as usinas termelétricas (UTE) 30,92% e as unidades fotovoltaicas (UFV) 19,29%. A energia outorgada média das usinas eólicas em construção é de 31,9 MW; das unidades fotovoltaicas é 38,9 GW; e das termelétricas 81,47 MW.

Em um horizonte de prazo maior, a potência outorgada dos 842 empreendimentos com construção ainda não iniciadas somarão mais 34 GW ao sistema, representando 15,09% da potência outorgada atual. As unidades fotovoltaicas em conjunto com as eólicas responderão por 84,2% da potência outorgada das plantas que ainda não iniciaram a construção, englobando 708 empreendimentos. Destaque absoluto para as UFV, que produzirão 62,5% dessa potência outorgada, distribuídas em 522 unidades. A energia outorgada média destas novas usinas fotovoltaicas e eólicas será de 40,7 GW e 39,8 GW, respectivamente.

Os números acima indicam que as usinas fotovoltaicas e as eólicas vão responder por 76% da expansão da oferta de energia elétrica nos próximos anos, o que implicará em um crescimento da participação dessas fontes na potência fiscalizada (potência das plantas em funcionamento) dos atuais 12,4%, para 25,8% da matriz elétrica, um crescimento de mais de 100%.

Apesar do aumento expressivo previsto para a geração de energia elétrica por meio das fontes fotovoltaica e eólica, a participação das fontes de energia renováveis (FER) na matriz elétrica brasileira praticamente não vai se alterar, passando dos atuais 82,23%, para 82,22%, quando toda a potência outorgada atual estiver sendo produzida. Isso ocorrerá porque pela potência outorgada contratada atualmente a geração por meio de hidrelétricas vai reduzir sua participação relativa dos atuais 62,07% para 45,86%. Ou seja, o crescimento da geração fotovoltaica e eólica não representará aumento dos renováveis na matriz por conta da queda da participação relativa da geração hidrelétrica.

O sistema elétrico nacional é altamente integrado, garantindo energia contínua para praticamente todas as localidades do país[2], e tem como espinha dorsal a energia gerada pelas hidrelétricas espalhadas pelo Brasil. Com raríssimas exceções, como a crise de 2001[3], o sistema garantiu a energia elétrica necessária para o crescimento do país nos últimos 50 anos. O sistema foi organizado na lógica, quando em funcionamento normal, de que a demanda definia a oferta de energia elétrica.

Mas as mudanças climáticas recentes por conta do processo de aquecimento global do planeta estão provocando diversos fenômenos naturais extremos, como o aumento dos desastres naturais e, não menos importante, o aumento na frequência de ciclos de redução da precipitação pluviométrica (chuva), o que pode se configurar em um risco crescente para sistemas de produção de energia elétrica ancorados em hidroeletricidade, como o do Brasil. Em períodos longos de baixa incidência pluviométrica a gestão dos reservatórios das hidrelétricas passa a ser uma questão central, o que justifica a edição MP 1.055 destacada acima. Mas essa gestão não é neutra, podendo impactar diretamente o fornecimento de água para atividades econômicas e para a população localizada à jusante das barragens.

Nesse sentido, a redução relativa da participação da energia elétrica produzida por meio de usinas hidrelétricas na matriz elétrica nacional pode sinalizar um fator de redução de risco do sistema no médio prazo, diante do cenário de aquecimento global.  Como vimos acima, o crescimento do sistema vai ser sustentado pela expansão da oferta das unidades produtoras fotovoltaicas e eólicas. O que do ponto de vista ambiental é uma excelente notícia, assim como do ponto de vista do desenvolvimento regional, dada a natureza descentralizada dessas fontes.

O problema é que diferentemente das demais fontes energéticas, o operador das usinas eólicas e fotovoltaicas não tem como garantir o volume de energia que vai entregar ao sistema. Não tem como armazenar o vento e o sol, como armazena-se a água nos reservatórios das hidrelétricas, e a volatilidade na incidência de ventos e do sol é uma realidade, impactando em grandes variações na energia produzida em curto espaço de tempo em usinas com essas fontes de energia. O crescimento da participação destas fontes na matriz elétrica nacional pode implicar em um problema para que o operador nacional do sistema integrado de fornecimento de energia elétrica (ONS) garanta um fornecimento contínuo da energia em função da demanda.

Não existe uma solução única e rápida para essa questão. A diversificação exercerá papel central nessa estratégia e a instalação de uma capacidade instalada bem superior à demanda, o que do ponto de vista econômico é um custo, é outro importante fator mitigador de riscos. A maior capacidade instalada deve ser acompanhada do aumento da dispersão geográfica das plantas eólicas e fotovoltaicas, garantindo que a queda de produção de energia elétrica de uma unidade por conta da redução da incidência do vento ou do sol seja reposta pela entrada em produção de outra planta em outra região onde estas condições estejam melhores. A integração do sistema será cada vez mais exigida.

O país não poderá prescindir, também, da expansão da energia elétrica produzida por meio de usinas termelétricas, por fonte renovável (biomassa) ou por fonte não renovável (gás natural), dado o caráter mais estável da produção dessa fonte. A variação positiva na oferta do gás natural, seja por conta da expansão da produção com a descoberta do pré-sal, seja por conta do aumento da infraestrutura para importação do mesmo, gera oportunidades para o crescimento da produção de energia a partir desta do gás natural. O aumento da oferta  tende a tornar mais barata a energia produzida por esta fonte e, apesar dos maiores impactos ambientais em relação a energia elétrica produzida pelas FER, estas plantas podem ser utilizadas como fator de estabilidade do sistema, garantindo a energia quando as demais fontes reduzirem sua produção.

As termelétricas movidas a diesel, com impacto ambiental muito maior que as abastecidas com gás natural, deveriam ser desincentivadas, mas a falta de uma política pública nesse sentido e de infraestrutura para movimentação e distribuição do gás natural estão provocando um movimento inverso, como se verá mais a frente.

O aumento da exploração do potencial hídrico do país, atualmente em 60%, também será necessário, resguardando questões de ordem ambiental e o respeito aos povos indígenas, uma vez que a maior parte deste potencial a ser explorado, 70%, se concentra na região norte do país.

Em outras palavras, a confiabilidade do sistema em garantir o fornecimento da energia elétrica em volume compatível com a demanda em uma situação de crescimento econômico com distribuição de renda e redução da pobreza no médio prazo vai exigir um novo ciclo de investimentos que, olhando para a história do país, terá que ser liderado pelo Estado Brasileiro.

O problema é que dois dos principais instrumentos do Estado para liderar esse desafio passam por um processo de privatização que vai comprometer fortemente a capacidade de intervenção do Estado brasileiro no setor energético: são a privatização da Eletrobras, recentemente aprovada pelo Congresso Nacional a partir de iniciativa do poder Executivo; e a privatização por partes da Petrobras, que vem sendo realizada a revelia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Não há um investimento de grande porte no setor hidrelétrico nacional nos últimos 50 anos sem a participação relevante da Eletrobras por meio de suas subsidiárias, viabilizando os mesmo com  sua participação importante em parcela dos recursos necessários para o investimento e no suporte técnico para construção e operação das plantas.

Quanto a Petrobras, esta anunciou, a dois anos, que iria vender todos os seus ativos de produção de energia elétrica, principalmente suas usinas termelétricas movidas a gás natural. Esse processo já se iniciou e na prática implica que ao invés de contribuir para a necessária expansão da oferta de energia elétrica no país a empresa vem disputando a poupança privada que poderia estar sendo utilizada para uma maior expansão do parque de termelétricas. Em outras palavras, parte do dinheiro que o setor privado poderia estar aplicando na construção de novas plantas produtoras de energia termelétricas, está sendo utilizado para comprar a capacidade já existente controlada pela Petrobras, o que não contribui com um centavo para a expansão da oferta de energia tão necessária para o futuro do país. No que diz respeito à geração de energia elétrica por meio das FER, a empresa se retirou, também, da geração eólica, vendendo seus ativos.

Além desses fatos, a visão de curto prazo tem prevalecido nas iniciativas do Estado Brasileiro. Prova dessa aposta do curto prazo em detrimento do médio/longo prazo é a Lei do Gás, aprovada recentemente no Congresso Nacional, que centra suas iniciativas na obrigação da Petrobras em compartilhar sua infraestrutura de movimentação e  processamento do gás natural com as demais empresas do segmento e não promove um incentivo a expansão dessa infraestrutura, o que deve levar a uma situação de aumento da oferta de gás natural na origem, em função do aumento da produção no pré-sal,  e uma falta de infraestrutura de movimentação, processamento e distribuição, para que esse gás natural abasteça a expansão do parque termelétrico e, também, chegue ao consumidor final.

Um importante indicador da falta de infraestrutura para movimentação e distribuição do gás natural no pais é que das 31 UTEs em construção com outorga já aprovada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), que utilizarão combustível de origem fóssil, apenas 22,6% são abastecidas com gás natural, todas as demais são movidas a diesel. Dentre as que ainda não iniciaram a construção e serão abastecidas com combustível fóssil, 42,9% são movidas a gás, as demais à diesel. Ou seja, a falta de infraestrutura para acesso ao gás natural tem obrigado os agentes a buscarem alternativas, o que implicará na produção de uma energia em menor escala, mais cara e com muito mais impacto ambiental.

Outro indicador da falta de infraestrutura para movimentação, processamento e distribuição de gás natural é a opção do maior complexo da América Latina de produção de energia a partir do gás natural – Gás Natural Açu (GNA)[4] -, em construção na região Norte do estado do Rio de Janeiro, por utilizar gás natural produzido e processado pela multinacional BP em outros países, importando o mesmo na forma líquida e regazeificado no terminal de GNL que está sendo construído dentro do complexo.

Em resumo, a crise hídrica vivenciada pelo país colocou luz sobre o importante debate das fontes da matriz elétrica nacional. Se no passado o sistema era altamente dependente da energia produzida nas usinas hidrelétricas, essa importância relativa vem se reduzindo no período recente e a tendência é de acentuação dessa diminuição nos próximos anos. Isso não é um problema, muito pelo contrário, a diversificação é importante para mitigar riscos, desde que os elevados percentuais de participação das energias renováveis sejam mantidos. O sistema de fornecimento de energia elétrica não pode prescindir de nenhuma fonte, principalmente para garantir a estabilidade no fornecimento dado o caráter volátil das FER. Não há dicotomia em investir no crescimento das FER e, ao mesmo tempo, impulsionar a geração termelétrica a partir do gás natural e dos resíduos de biomassa. São fontes que se complementam na garantia da estabilidade no fornecimento da energia, diminuindo os riscos. O problema é que estamos vendo uma completa destruição dos principais instrumentos do Estado para intervir nesse processo, o que traz grandes incertezas sobre a oferta de energia elétrica no Brasil no médio/longo prazo, além da acentuação dos impactos ambientais.

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Fontes:

[1] 2021, Governo Federal – MP 1.055

[2] Em 2020, 258 localidades eram atendidas por sistemas isolados devido a questões principalmente econômicas, com destaque para Boa Vista/RR. Estas localidades consomem menos de 1% da carga do país e são abastecidas por unidades isoladas, principalmente UTEs movidas a óleo diesel e carvão. Parte do subsídio cruzado pago nas contas de luz pelos consumidores de energia no Brasil é para financiar o subsídio aos consumidores finais nessas localidades.

[3] A crise de 2001 foi potencializada pelo baixo investimento em redes de transmissão, o que implicou na impossibilidade de levar a energia produzida em algumas regiões para os principais centros consumidores.

[4] Ao todo serão duas termelétricas que juntas alcançarão 3 GW de capacidade instalada, o que permite gerar energia para abastecer 14 milhões de residências.