Por Francismar Cunha Ferreira *
A indústria petrolífera brasileira passou por diferentes transformações no decorrer de sua história. De modo geral, sua trajetória pode ser periodizada, basicamente, em quatro fases. A primeira é anterior a 1953 e compreende o período chamado pré-monopólio, marcado por atividades exploratórias dispersas e descontínuas. A segunda, por sua vez, tem seu início em 1953, com a promulgação da Lei 2.004, que institui o monopólio do Estado sobre o setor petrolífero e cria a Petrobras. A aprovação da Lei do Petróleo (Lei 9.478) em 1997, que promoveu, dentre outras coisas, a flexibilização do monopólio estatal, marca o fim da segunda e início da terceira fase, abrindo o caminho para a entrada de outros capitais nacionais e multinacionais no setor de exploração e produção[1]. Entretanto, esta fase encerra-se em 2016, ano em que há um profundo e contraditório processo de desverticalização da Petrobras por meio da privatização de ativos da companhia em todos os segmentos, e o surgimento de novas regulações que vieram limitar/restringir a presença da empresa em alguns setores. Apesar de, momentaneamente, novas privatizações estarem suspensas, essa quarta fase da indústria petrolífera brasileira começa manifestar suas reverberações e contradições na atualidade.
Os efeitos das privatizações na Petrobras e na indústria petrolífera brasileira como um todo, após o ano de 2016, são múltiplos. Tomamos como recorte o campo Albacora Leste, situado ao norte da bacia de Campos (ver mapa 01), que teve sua privatização concluída em janeiro de 2023. Na ocasião, a Prio (antiga PetroRio Jaguar) pagou US$ 1,658 bilhão para assumir o controle de 90% do ativo que pertencia à Petrobras. Os outros 10% permaneceram com a multinacional Repsol.
O Campo de Albacora Leste está localizado a cerca de 120 km da costa, em lâmina d’água, que varia de 1.000 m a 2.150 m. Descoberto em 1986, a produção teve início em 2006, com a instalação da plataforma Petrobras 50 (FPSO P-50). Atualmente, o campo produz uma média de 30 mil barris de petróleo por dia.
Mapa 01: Localização do campo Albacora Leste e do polígono do pré-sal (Lei 12.531/2010).
O campo de Albacora Leste é regido pelo modelo de contrato de Concessão, e a Petrobras teve o direito ratificado sobre a área no contexto da Rodada 0 (zero), em 1998.
De modo geral, o regime de Concessão estabelecido no país em 1997 garante às petroleiras vencedoras das licitações o direito a todo o petróleo e gás produzido após o pagamento de taxações pela ocupação, ou retenção, da área (no caso dos blocos terrestres), royalties e participação especial nos casos de campos de grande produção. Com exceção da rodada zero, em todas as demais rodadas de licitação sob o regime de Concessão, as petroleiras ou consórcios vencedores são aqueles que oferecem maior valor em bônus de assinatura, e propõem um Programa Exploratório Mínimo (PEM) que seja mais vantajoso dentre os critérios previstos no edital de licitação.
Com o decorrer do tempo e o avanço da tecnologia e das pesquisas exploratórias da Petrobras, em 2006 veio a se consolidar uma das principais descobertas de petróleo do século XXI: o pré-sal nas bacias de Campos e Santos. O primeiro óleo extraído da nova fronteira petrolífera brasileira se deu em 2008 no campo Jubarte no litoral do Espírito Santo ao Norte da Bacia de Campos.
Entretanto, com o desenvolvimento das atividades no pré-sal, o regime de concessão já não se mostrava mais adequado, uma vez que não garantia a presença da União e da Petrobras nas novas e estratégicas descobertas. Além disso, os riscos nessa nova província petrolífera eram muitos menores e os volumes descobertos, em contrapartida, muito maiores. Deste modo, em 2010, por meio da Lei 12.351, foi promulgado o regime de Partilha, destinado somente às áreas interiores ao polígono do pré-sal (ver mapa 01) e aquelas que poderiam ser consideradas estratégicas. A Lei instituiu, ainda, a criação de um Fundo Social e da estatal Pré-sal Petróleo S.A. (PPSA) para atuar na gestão do excedente óleo dos contratos. Também foi definida a obrigatoriedade da participação da Petrobras como operadora com, no mínimo, 30% nos consórcios formados para a exploração dos blocos e campos de petróleo. Por fim, o consórcio vencedor da licitação sob o regime de Partilha seria aquele que quitasse o bônus de assinatura, e realizasse a maior oferta de petróleo à União (percentual de óleo lucro) descontado os investimentos, custos e impostos em geral. Após essa divisão, o volume de petróleo resultante seria da(s) petroleira(s) do consórcio. Logo, as medidas instituídas pela Lei 12.351/2010 garantiam uma maior participação do Estado por meio da PPSA e da Petrobras sob o pré-sal[2].
Em 29 de novembro de 2016, no início da quarta fase da indústria do petróleo no Brasil, a Lei 12.351/2010 do regime de Partilha foi alterada para a Lei 13.365. No novo texto, foi removida a obrigatoriedade da participação mínima de 30% da Petrobras nos consórcios, bem como a obrigatoriedade de a estatal ser operadora. A Petrobras, a partir de então, seria apenas consultada para manifestar seu interesse na participação das áreas a serem licitadas.
Diante do exposto até aqui, surge a questão: qual a relação do regime de Partilha com o campo Albacora Leste e sua privatização?
O campo de Albacora Leste, conforme indicado, é regido pelo regime de Concessão, afinal, as atividades exploratórias e de produção datam do final da década de 90 e início dos anos 2000. Entretanto, Albacora Leste está situado no interior do polígono do pré-sal, delimitado pela lei 12.351/2010, e o avanço de pesquisas exploratórias iniciadas pela Petrobras, ultrapassando o pós-sal e atingindo o pré-sal, indicam uma redefinição das reservas do campo. A Petrobras, por meio da perfuração do poço 6-BRSA-1250-RJS (ABL 85 – Arapuçá) há 1.956 metros sob a superfície do mar com profundidade de 4.536 metros, manifestou a ocorrência de reservatórios no pré-sal em Albacora Leste.
Apesar das potencialidades e de toda a infraestrutura construída em Albacora Leste, a Petrobras vendeu o campo para a Prio. A negociação, concluída em janeiro de 2023, aconteceu horas antes do novo presidente Jean Paul Prates assumir interinamente o comando da estatal. Contudo, essa privatização não pode ser vista somente como a transferência do direito de propriedade sobre o campo. Trata-se de uma janela que se abre para uma petroleira explorar áreas do pré-sal por meio do regime de Concessão. Campos explorados nessa circunstância não é algo inédito, o já citado campo Jubarte, por exemplo, possui poços no pós e pré-sal, contudo, trata-se de um campo que teve suas atividades exploratórias e produtivas iniciadas antes do regime de Partilha entrar em vigor e não houve nenhuma negociação posterior do direito de propriedade do campo. O campo de Jubarte continua 100% controlado pela Petrobras.
Todavia, diferentemente do campo de Jubarte, no Campo de Albacora Leste as atividades exploratórias em relação ao pré-sal ainda estão em desenvolvimento e a produção de fato ainda não foi iniciada. Destarte, a Prio poderá a vir explorar o pré-sal com a aquisição concluída em 2023, mesmo não sendo qualificada pela ANP para operar no pré-sal[3]. De fato, a Prio tem reais interesses em avançar em projetos no pré-sal em Albacora Leste. De acordo com informações do portal EPBR[4], a proposta da nova proprietária do campo é “perfurar oito novos poços produtores, sendo dois no pré-sal e seis no pós-sal, além de um novo poço injetor”. Ora, a Prio irá explorar e produzir no pré-sal sem qualificação e sob o regime de Concessão, mesmo adquirindo o campo em 2023, treze anos após a implantação de um regime próprio para regular os contratos do pré-sal que é o regime de Partilha. A Prio se torna assim, a primeira petroleira, depois da Petrobras, a operar no pré-sal pelo regime de Concessão. Contudo, existe uma diferença legal nítida: todas as operações sob o regime de Concessão da Petrobras no pré-sal precedem a lei do regime de Partilha, logo permanecem sob Concessão pois a aplicação da lei 12.351/2010 não é retroativa. Já no caso de Albacora Leste e da Prio, trata-se de uma negociação onde o regime de Partilha já se encontrava em vigor, tão logo deveria ser aplicado, ainda mais partindo do princípio de que a produção do pré-sal em
A Prio, nesse contexto, chega ao pré-sal não somente por uma janela aberta pela privatização do campo de Albacora Leste, mas de um “relativo vácuo regulatório”, afinal, não existe uma regulação própria referente aos campos com poços no pós-sal que se encontram no interior do polígono do pré-sal e que podem vir a ter suas reservas ampliadas em razão do avanço exploratório no pré-sal. O que se nota na verdade, é a negação/descumprimento da lei do regime de Partilha que regula os contratos do pré-sal pós-2010, um aparente vício contratual de uma venda de ativos açodada. Afinal, qualquer petroleira, após a aprovação do regime de Partilha, apenas adquire condições de explorar o pré-sal se for habilitada pela ANP e se passar pelas rodadas licitatórias sob o regime de Partilha. Aparenta ser lesivo ao Estado, em especial, na figura da PPSA, que não negociou o óleo lucro nem o bônus de assinatura previstos no regime de Partilha, como também tolhe a Petrobras e todas as demais petroleiras que buscam acessar ao pré-sal nessa área por meio das regulações vigentes. Aliás, poderemos ter operadores diferentes de pós-sal e pré-sal em uma mesma região? Não há balizamentos aparentes que impeçam essa possibilidade.
Em suma, a privatização do campo de Albacora Leste e as reservas do pré-sal que nele se encontram manifestam uma face que reafirma um aspecto presente na quarta fase da indústria petrolífera brasileira. Tratam-se de interpretações abusivas ou, até mesmo, da negação das regulações vigentes para acelerar o desmembramento da Petrobras e possibilitar a entrada contraditória e duvidosa de novos agentes na indústria petrolífera brasileira, em especial, no pré-sal. Nessas condições, os contratos precisarão ser revistos e reavaliados sob a ótica da legislação vigente, a fim de não apresentarem vícios nem prejuízos para a Petrobras, nem para o Estado Brasileiro.
[1] A periodização das três primeiras fases da indústria petrolífera brasileira foi definida pela economista Adriana Fiorotti Campos em sua tese de doutorado e em seu livro intitulado Indústria do petróleo: desdobramentos e novos rumos da reestruturação Sul-Americana dos anos 90. Já a quarta fase é definida na tese de doutorado do autor.
[2] Ver mais sobre as regras originais do regime de Partilha em “O pré-sal e a regulação: Interesses nacionais ou estrangeiros” com autoria de Rodrigo Pimentel Ferreira Leão disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/o-pre-sal-e-a-regulacao-interesses-nacionais-ou-estrangeiros/
[3] Nenhuma informação relativa à qualificação da Prio foi encontrada no site da ANP. Informações relevantes podem ser acessadas em https://www.gov.br/anp/pt-br/rodadas-anp/oferta-permanente/opp/inscricao-licitantes e https://www.gov.br/anp/pt-br/rodadas-anp/rodadas-concluidas/partilha-de-producao/1a-rodada-partilha-producao-pre-sal/qualificacao-habilitacao-de-empresas
[4] Disponível em: https://epbr.com.br/petrorio-preve-investir-us-150-milhoes-de-imediato-em-albacora-leste/ .
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* Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Possui licenciatura plena, bacharelado e mestrado em Geografia pela mesma universidade. Desenvolve pesquisas na área de Geografia investigando, principalmente, os seguintes temas: Geografia Econômica, Geografia industrial, Geografia do petróleo, Produção do espaço urbano, Reestruturação urbana, Planejamento urbano e regional, Região metropolitana, Metropolização, Renda fundiária urbana e Geoprocessamento.