Quando apresentado no dia 29 de outubro de 2015, o programa Uma Ponte para o Futuro parecia apenas mais um apanhado de ideias superficiais com o objetivo de afagar empresários pouco preocupados com o desenvolvimento do país. Aqueles que atrelam a ampliação do lucro ao corte de direitos e conquistas sociais.
Um ano depois, o pesadelo virou realidade e muitos dos pontos presentes no programa do partido do ilegítimo Michel Temer (PMDB) estão em pleno funcionamento.
Constam na proposta – e na PEC 55, antiga PEC 241, – a redução do endividamento público (pago pelos mais pobres, claro, com o congelamento de investimentos sociais, na saúde e na educação), o pacote de privatizações, a volta do Brasil pouco expressivo no mercado internacional e a ideia de que o negociado deve se sobrepor ao legislado nas relações trabalhistas.
Um conjunto de ideias que não são assim tão recentes, muito menos modernas, como apontam os economistas Marcio Pochmann e Luiz Gongaza Belluzzo.
Como na época da ditadura
Pochmann lembra que uma estrutura semelhante foi aplicada durante a ditadura militar. “O Ponte para o Futuro pode ser comparada ao Paeg (Plano de Ação Econômica do Governo) que se desenvolveu a partir do golpe de 1964. Há 52 anos, o projeto que instalou o primeiro Ato Institucional, depôs o presidente João Goulart e estabeleceu a junta militar, já trazia como prioridade o limite de gastos públicos”, apontou.
Portanto, lá como cá, quando a presidenta eleita Dilma Rousseff também teve o mandato surrupiado, a proposta de relacionar investimento público a prejuízo já estava presente.
“A ideia de reforma é sempre muito sedutora e se torna fácil de vender depois que você pinta o governo em vigor com um verniz de corrupção epidêmica. A história se repete. A reforma da vez é a PEC 55, mas há outras na mesma linha, como a reforma do ensino médio, que faz parte de uma reforma mais ampla da educação brasileira, e teremos na sequência já anunciadas as reformas previdenciária, trabalhista e política. E essas propostas alteram o curso do acordo político que se estabeleceu no Brasil, a partir da Constituição de 1988, que dava sentido de enfrentamento às desigualdades”, avalia Pochmann.
Apoio internacional e a nova política
Outra semelhança entre o Ponte e o Paeg, diz, é a forte influência internacional. “O Paeg foi escrito em inglês, havia grande intervenção norte-americana no país, tanto que os EUA apoiaram a ditadura e até enviaram um navio para caso de guerra civil. O golpe introduzido em 2016 também expressa interesses estadunidenses inegáveis em relação a uma série de ações que vinham sendo desenvolvidas pelo país desde 2003 e buscavam maior autonomia da política externa brasileira. A relação Sul-Sul e o fortalecimento dos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia e China) é diferente daquilo que os EUA entendem ser o melhor para a América Latina”, avalia.
Além de um realinhamento do Brasil com EUA, Marcio Pochammn defende que o governo golpista representa o que classifica de rompimento da aliança ampliada de classes sociais.
“Entre 1985 e 2015, tivemos governos de conciliação de classes mais ou menos ampla, mas Temer rompe com essa trajetória. Isso significa que uma parte da sociedade, especialmente os trabalhadores, vai ficar de fora do governo e das suas opções de políticas econômica e social. Uma nova trajetória se abre, não se sabe por quanto tempo, mas que não cede à negociação de classes”, avalia.
Democracia em risco
Com isso, a democracia corre risco perante um governo que tende as ser cada vez mais violento e autoritário para impor reformas que avalia urgentes.
“A experiência democrática iniciada em 1985 com governos baseados em alianças de classe foi o que impediu um conjunto de reformas já identificadas no Programa Esperança e Mudança, de 1982. Mas quando entrou o regime democrático, o Brasil precisaria ter feito uma série de reformas que não foram feitas, ocorreram apenas mudanças pontuais. E o governo Temer se propõe a implementar o que já era ruim há 34 anos”, analisa Pochmann.
O novo está atrasado
Para Luiz Gonzaga Belluzzo, o Ponte para o Futuro escancara um provincianismo intelectual brasileiro ao apostar na retração da economia, exatamente o oposto do que tem feito o restante do mundo.
“Esse plano é fundado em cima de uma concepção de política econômica que está sendo superado no mundo todo. O arranjo que valeu dos anos 1980 até a crise de 2008 terminou e estamos vivendo um momento de muita incerteza, muita busca de solução, mas economias centrais estão com políticas econômicas que procuram favorecer a expansão da demanda”, afirma.
Belluzzo cita como exemplo o recente artigo da presidente do Banco Central Norte-Americano, Janet Yellen, no qual ela defende recriar instrumentos para estimular a demanda. “Isso só pode ser feito na política fiscal por meio de investimento em infraestrutura para a constituição de projetos que estão ocorrendo na indústria 4.0. São mudanças na gestão dos sistemas das cadeias de valores comandados por um programa e executado pelo governo numa parceria com a academia e empresas, especialmente nos EUA e Alemanha. Um modelo que busca coordenar por meio de programas todo o funcionamento do sistema industrial.”
E a indústria?
Para ele, aí entra outro problema: o atraso da produção nacional, que deve ser aprofundado com o pacote de privatizações e os ataques às empresas brasileiras.
“O mercado, hoje em dia, é comandado por grandes blocos de capital e pequenas e médias empresas articuladas a ele. Não mais como concebido no programa Ponte para o Futuro. As economias centrais, asiáticas, passam por uma transformação tecnológica profunda e isso envolve a discussão sobre políticas sociais como a renda básica de cidadania. Porque o modelo da indústria 4.0 vai desempregar e você precisa amparar as pessoas de alguma forma”, explica Belluzzo.
Por aqui, ressalta, o governo ilegítimo e o Congresso, com apoio da velha mídia e do Judiciário, debatem exatamente o contrário. “No Brasil, discutimos a Previdência de uma forma totalmente afastada e defasada em relação ao resto do mundo. Não é que o sujeito vai se aposentar com 65 anos, você precisa criar uma renda básica para ele sobreviver por 25 anos. Da maneira que propõe o governo, não pode ser Ponte para o Futuro é ponte para o passado. Não estão enxergando nada e vão agravar a situação social brasileira.”.
Para ele, isso ocorre porque o pacote econômico trata a política fiscal, que é resultado, como fundamento.
“Não temos discussão sobre questões essenciais da economia brasileira, ditas estruturais, nosso debate é superficial, sobre resultado. A estrutura tributária, por exemplo, é o resultado de uma economia que perdeu boa parte de seu dinamismo. O Brasil foi o país que teve o processo de industrialização mais rápido e completo até os anos 1980, hoje não é nem uma sombra isso.”
Como o Ponte para o Futuro é um projeto anacrônico, que não acompanha as mudanças mundiais, Luiz Gonzaga Belluzzo acredita que vai agravar o declínio da economia brasileira que já vem de 20 anos
“Houve uma interrupção desse declínio com o ciclo de commodities e a expansão do mercado interno, com políticas sociais e o salário mínimo que procuraram dar impulso à economia, mas nos descuidamos de várias questões, como a queda da indústria brasileira.”.
Alternativa a isso
Belluzzo defende a necessidade de recompor a relação entre Estado e setor privado que foi desmanchada ao longo dos últimos 20 anos com as privatizações. “Temos hoje a Petrobrás que tem uma capacidade de articulação com o setor privado, mas que está sendo desmanchada de uma maneira tosca e isso vai acabar com a política de conteúdo local.”.
Ao citar mais uma vez os asiáticos, ele lembra que foi no Brasil que os chineses se inspiraram. “Quando você pega a China, eles vieram aqui nos anos 1970 para ver como era, criaram grandes empresas estatais que fazem programas de investimento e estão se tornando muito eficientes. Vão ter controle de quase todos os sistemas de energia no mundo. Essas companhias se desenvolvem para demandar equipamento e insumos para a indústria local, algo que fizemos até os anos 1970 e depois desmanchamos”, critica.
Diante desse cenário, aponta, o discurso de que a PEC 55 será fundamental para angariar investimentos torna-se um grande engodo. “Acham que se aprovarem essa proposta vão infundir confiança aos empresários e a economia vai voltar a crescer, mas a economia não tem horizonte de expansão porque não tem capacidade de renovação tecnológica. A taxa do investimento público é muito baixa, não vai chegar a algum lugar”, aposta.
Resistência para retomar esperança
Marcio Pochmann defende que a passividade brasileira é muito semelhante àquela vista durante a implementação das mudanças impostas pelos governos militares. Segundo ele, há uma espécie de anestesia e o fim dos ataques aos direitos depende do renascimento de uma resistência suficiente forte para trazer a esperança de volta à cena.
“Os resultados das mudanças que estão sendo feitas agora se apresentarão de forma mais efetiva no médio e longo prazo. Esse momento de certa passividade, embora tenhamos contestação dos segmentos organizados, será prolongado até que tenhamos uma oposição muito mais forte frente ao governo atual”, aposta.
Fonte: Rede Brasil Atual