Por Gislene Madarazo/CNQ
Outubro de 2015: o rompimento de uma linha de transferência de nafta para os fornos causou um grande incêndio dentro da Braskem, ferindo seis trabalhadores e assustando os moradores do entorno do Polo Petroquímico de Capuava, no Grande ABC.
Início de novembro de 2015: rompimento de duas barragens da Samarco (empresa da Vale e BHP Hillington), em Mariana, Minas Gerais, gera um tsunami de lama tóxica. Morrem pessoas, animais e o Rio Doce. Lama, depois de um mês, invade o mar pelo Espírito Santo e chega ao Arquipélago de Abrolhos, no sul da Bahia.
Dois exemplos recentes de acidentes químicos ampliados, tema principal do Seminário Nacional Sobre os Riscos de Acidentes Maiores, realizado pela CNQ-CUT há 20 anos, e que resultou na Carta de Atibaia: um documento que apresentou à sociedade brasileira, em 1995, as principais causas de um acidente ampliado e propôs oito ações preventivas.
O termo Acidentes Ampliados ou Maiores designa aqueles acidentes que, além dos trabalhadores locais, podem atingir as populações vizinhas das empresas por meio de vazamentos de substâncias químicas, incêndios e explosões e ainda ter repercussões futuras na forma de doenças, como câncer e deformação de fetos, e degradação ambiental por um longo período.
“O Seminário teve como foco central a Convenção 174 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Acidentes Industriais Maiores, que posteriormente foi ratificada pelo Brasil graças, em grande parte, a mobilização dos nossos sindicatos a partir dessa atividade. Mas o que surpreende é a contemporaneidade da Carta de Atibaia vinte anos depois”, destaca o atual secretário de saúde do trabalhador da CNQ-CUT, Antonio Goulart, que participou da atividade em 1985.
Explosão da PQU e Cubatão
Os antecedentes à atividade não eram poucos e eram graves. A série de três acidentes na então recente privatizada Petroquímica União (PQU), sendo o último deles a explosão que matou um trabalhador e feriu nove outros em 1992, foi a principal impulsionadora para a realização do Seminário, porém, outras ocorrências mostravam o quadro de despreparo das empresas em relação às condições de saúde e segurança, tais como os vazamentos de cloro na Solvay em Santo André/SP; contaminações ambientais na Matarazzo, em São Caetano/SP, explosão seguida de incêndio na Brospol/Polibrasil de Duque de Caxias/RJ; acidentes de Namorado 1 e Refinaria de Manguinhos/RJ e o escândalo ambiental do Caso Rhodia em Cubatão/SP.
“Os sindicatos demonstravam grande preocupação com fatores de risco e nossa briga também era pela participação do sindicato nas investigações dos acidentes ampliados, o que as empresas não permitiam”, conta o coordenador geral do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo, Osvaldo Bezerra, o Pipoka, que na época era o secretário de saúde da CNQ-CUT. “Infelizmente muitos desses fatores estão ainda hoje fortemente presentes – e em alguns casos até agravados – como a crescente terceirização, a precariedade da manutenção de equipamentos; a pressão por produção e sobrecarga de trabalho”, completa o dirigente.
Marco na luta sindical
Um dos organizadores do evento e da posterior publicação dos Anais do Seminário, engenheiro de segurança Nilton Freitas, na época assessor da Comissão de Saúde, Trabalho e Meio Ambiente (COMSAT) do Sindicato dos Químicos do ABC, concorda com Pipoka e Antonio Goulart em relação à contemporaneidade de algumas causas apontadas na Carta de Atibaia, citando como exemplos a redução do efetivo, a exigência de polivalência e a automação acelerada sem discussão e preparação dos trabalhadores. Contudo, Freitas concentra sua avaliação sobre os vinte anos do Seminário e da Carta de Atibaia pelos acertos das propostas elencadas e pela importância da atividade no processo de ratificação da Convenção 174 da OIT.
“Os avanços obtidos a partir desse Seminário foram excelentes, em certa medida todas as propostas foram implementadas. A partir de situações locais, nós conseguimos levar a discussão dos riscos dos acidentes ampliados ao âmbito nacional. O resultado foi a ratificação da Convenção 174 da OIT em 2001, a revisão da NR-13 (sobre Caldeiras e Recipientes sob Pressão) e, sem dúvida, um grande avanço foi a criação do GET – o Grupo de Estudos Tripartites da Convenção 174 que hoje está em pleno funcionamento, embora não institucionalizado e que talvez seja a única instância que de fato faz o acompanhamento das situações”, pontua Freitas.
A proposta ainda pendente, de acordo com Freitas, trata do direito à informação sobre riscos para trabalhadores, sindicato e comunidades vizinhas. “Quando da explosão da empresa Di-All em Diadema, em 2009, impulsionamos por meio do Sindicato dos Químicos do ABC um projeto de lei estabelecendo a melhora da comunicação de riscos, abrindo um canal de informações aos cidadãos que hoje é lei municipal, porém manteve-se como uma ação local”.
O engenheiro de segurança Roque Puiatti, do MTE, também presente ao seminário representando o então Ministério do Trabalho (MTb), situa a realização do Seminário e a Carta de Atibaia como um marco na luta sindical para a prevenção desse tipo de acidentes. “Além de dirigentes sindicais, foram convidados representantes de órgãos de governo, empregadores, Universidade, todos expressaram sua visão sobre o tema, qualificando o que foi um dos primeiros debates sobre o assunto no Brasil”, recorda. “No decorrer dos anos, a Convenção 174 foi guia para criação e revisão de legislações no campo da prevenção, como por exemplo, em 2012, a revisão da Norma Regulamentadora 20, que trata da Segurança e Saúde no Trabalho com Inflamáveis e Combustíveis”, acrescenta o engenheiro. Para ele, lembrar da Carta de Atibaia é resgatar a luta dos trabalhadores químicos, petroquímicos, petroleiros pela prevenção de acidentes químicos ampliados.
Prevenção e planos de emergência
Os casos de rompimento das barragens em Mariana e incêndio na Braskem mencionados no início da matéria reacenderam o sinal de alerta nos sindicatos: como estão as medidas preventivas de segurança e planos de emergência das empresas?
“O recente acidente ampliado na Braskem nos levou a uma discussão sobre segurança no setor. O Polo Petroquímico do ABC é composto por nove indústrias e precisamos retomar a discussão sobre segurança, meio-ambiente e saúde”, afirmou o presidente do Sindicato dos Químicos do ABC, Raimundo Suzart na VI Plenária Nacional da CNQ-CUT realizada há poucos dias. “A redução de investimento e a redução de 40% no número de trabalhadores trazem riscos enormes para a indústria química e petroquímica na nossa região”, completou.
Medidas de prevenção para acidentes ampliados preveem além do mapeamento dos riscos, um sistema de evacuação no qual todos que estão na área de riscos devem ser avisados e já estarem devidamente treinados como parte do plano de emergência. Em Mariana, o sinal sonoro de alerta após o rompimento da primeira barragem não funcionou.
Na Solvay, em Santo André, lembra o engenheiro Nilton Freitas, “mapeamos possíveis trajetos de vazamento de cloro e a orientação aos moradores do entorno, em caso de emergência, era não correr, mas entrar em casa e colocar panos molhados nas frestas das portas e janelas, como medida para não entrarem em contato com o gás”.
Potencial de acidentes ampliados nas plantas brasileiras da Braskem
Em dois encontros da Rede dos Trabalhadores da Braskem, em Porto Alegre em 2010 e Alagoas em 2013, foram abordadas as questões da saúde do trabalhador e segurança na empresa, e em ambos os participantes analisaram os ambientes do trabalho e enfatizaram que as plantas apontavam para potenciais acidentes ampliados. “Depois disso aconteceram inúmeros acidentes nas plantas no Brasil”, afirma o secretário da CNQ Antonio Goulart, dirigente do Sindipolo RS.
“Nas discussões ficou claro a necessidade de buscarmos uma maior interlocução com a empresa, afim de transmitirmos nosso receio com outros acidentes que poderiam acontecer tendo em vista sua atual gestão. Agora, tendo em vista o último acidente químico ampliado em uma unidade da Braskem, que foi qualificado pela empresa como um INCIDENTE, a tomada de providências e interlocução com a empresa e órgãos públicos foi feita pelo Sindicato dos Químicos do ABC”, explica.
Goulart destaca ainda que a secretaria de saúde da CNQ realizará no primeiro semestre de 2016 um seminário para debater os Acidentes Químicos na Visão dos Trabalhadores, afim de qualificar seus filiados e demais interessados. “Pretendemos discutir a visão dos trabalhadores nas empresas que teimam em não reconhecer que em suas gestões preponderam o econômico suplantando aspectos relativos à saúde e segurança de seus trabalhadores”.
Carta de Atibaia
O Seminário Nacional sobre os Riscos de Acidentes Maiores foi realizado entre os dias 29 de novembro e 01 de dezembro de 1995, no município de Atibaia – interior de São Paulo, sob a coordenação da CNQ-CUT e com o apoio e promoção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sediada em Genebra, Suíça.
A atividade reuniu sindicalistas do ramo químico de todo o Brasil, pesquisadores da Fiocruz, da Fundacentro, da CETESB, engenheiros de segurança do Ministério do Trabalho e do DIESAT, cipeiros, representante da central sindical italiana FILCEA e da OIT.
O documento final do Seminário, intitulado “Carta de Atibaia sobre os Acidentes Ampliados – A Visão dos Trabalhadores”, sintetiza o diagnóstico e as principais propostas dos participantes.
O relatório final do Seminário foi publicado pela Fundacentro (MTE) em 2002. Confira abaixo a íntegra da Carta:
Carta de Atibaia sobre os Acidentes Ampliados – A Visão dos Trabalhadores
Nós, sindicalistas representantes dos trabalhadores petroleiros, petroquímicos e químicos brasileiros, reunidos no Seminário Nacional sobre os Riscos de Acidentes Maiores, realizado com o apoio da OIT, na cidade de Atibaia, São Paulo, entre os dias 29/11 e 01/12 de 1995, vimos através desta apresentar à sociedade brasileira, as seguintes considerações e propostas:
Considerando que acidentes ampliados tais como incêndios, vazamentos e explosões têm ocorrido nas indústrias brasileiras, atingindo primeiramente os trabalhadores e, em muitos casos, as comunidades vizinhas e o meio ambiente, com riscos de atingir inclusive as gerações futuras;
Considerando que as causas dos acidentes ampliados têm como raiz o modo como a grande maioria das empresas vem organizando o trabalho e gerenciando a operação das plantas industriais, combinando forte terceirização; ausência de efetivos investimentos em segurança, resultando na precariedade da manutenção de equipamentos, pressões das gerências em favor da produção, levando frequentemente à desconsideração dos procedimentos de segurança; grande redução do efetivo de trabalhadores e exigência de polivalência, o qual tem gerado uma sobrecarga de trabalho; automação acelerada sem discussão com os sindicatos – ao contrário do que ocorre na Europa – e sem preparação dos trabalhadores, contribuindo para agravar as situações de riscos; e, finalmente, a forte cultura autoritária que permeia as relações de trabalho nas indústrias, contribuindo ainda mais para a geração de situações perigosas;
Considerando que as consequências dos acidentes ampliados têm sido graves e resultado em mortes, lesões, queimaduras e intoxicações entre os trabalhadores e as comunidades vizinhas, além de sérios danos ao meio ambiente, sendo agravadas pelo completo despreparo dos serviços públicos de saúde, trabalho e meio ambiente, inexistindo no Brasil uma política de registro, prevenção e controle destes eventos;
Considerando a postura das empresas em não permitir o livre acesso dos sindicatos às investigações sobre os acidentes ampliados ocorridos e, em alguns casos, alterarem significativamente os vestígios; associado ao complexo equívoco técnico e deformação ética de se atribuírem aos trabalhadores a culpa e os punir, o que é muitas vezes agravado pela omissão e despreparo dos órgãos públicos em atuar nestas situações;
PROPOMOS:
1) Que se assuma como prioridade a implementação de uma Política Nacional de Prevenção e Controle dos Acidentes Ampliados, através da implementação de comissões envolvendo trabalhadores, empresários, universidades, centros de pesquisa e governo nas áreas de Trabalho, Saúde e Maio Ambiente, incluindo a elaboração de normas e portarias específicas;
2) Que o Executivo e o Legislativo agilizem a ratificação, pelo Brasil, da Convenção 174 da Organização Internacional do Trabalho, voltada ao controle e prevenção dos acidentes ampliados;
3) Que as empresas mudem suas posturas e práticas de gerenciamento e relações trabalhistas, assumindo um diálogo efetivo com os trabalhadores e seus sindicatos mediante a efetiva implementação da organização nos locais de trabalho;
4) Que as estratégias de reestruturação produtiva, introdução de novas tecnologias e implementação de programas de competividade e qualidade nas empresas observem rigidamente os critérios de saúde, segurança e meio ambiente, incorporando os trabalhadores e suas representações sindicais na negociação destas mudanças;
5) Que o Governo Brasileiro implemente um Sistema Nacional de Registros e Notificações de Instalações Perigosas e Acidentes Ampliados no país;
6) Que seja garantido o acesso às informações sobre os riscos das instalações perigosas para os trabalhadores, sindicatos e comunidades vizinhas às plantas industriais, bem como a participação na elaboração e implementação dos planos de emergência;
7) Que as universidades e instituições públicas, articuladas com a sociedade civil organizada, contribuam ativamente no desenvolvimento de pesquisas voltadas à análise e controle das causas e consequências dos acidentes ampliados, inclusive através de programas de formação e informação para os trabalhadores e comunidades próximas às áreas de riscos;
8) Que sejam implementadas as propostas da delegação tripartite brasileira (CUT, CNI e MTb), discutidas e consensuadas no Seminário Latino-americano sobre a Prevenção de Acidentes Industriais Maiores, realizado em agosto de 1994 e promovido pela OIT e MTb.
Atibaia, 01 de dezembro de 1995
Central Única dos Trabalhadores – CUT
Confederação Nacional do Ramo Químico da CUT – CNQ-CUT
Federação Única dos Petroleiros – FUP