Foi da consciência da milenar opressão de gênero, um fenômeno pancultural, e da compreensão que os governos nos devem muito que surgiu a idéia de um dia para denunciar a situação de segunda cidadania da mulher. A abolição de todas as formas de opressão está no horizonte, pois suas sementes já foram plantadas. A saga feminista hoje consiste em regá-las, pois nós, as feministas, somos jardineiras de um padrão cultural e ético não opressor. Só assim reverenciamos Clara Zetkin, líder socialista alemã, pelo seu gesto de propor na 2ª Conferência Internacional da Mulher Socialista, em Copenhague (1910), o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. Foi escolhido o 8 de março.
Há duas perguntas que me fazem muito. A primeira, o que uma mulher como eu ainda quero da vida? A segunda, por que o 8 de março é Dia Internacional da Mulher?
Pensando bem, e pensar é sempre perigoso, cada pessoa sabe de si. Digo-lhes: vivo prenhe do amanhã… Pensando mais, é inegável que tenho uma vida privada que de certo modo contém aparentes privilégios, considerando-se o contexto brasileiro – a Constituição mais avançada do mundo em relação aos direitos da mulher, que ainda não é a regra para todas; o fato inconteste de ser sobrevivente do tétano neonatal; e que ”eu venho lá do sertão”…
Puxando pela memória… O Belém (dos Pretos), torrão ancestral materno (Colinas-MA), e Colinas, onde estudei, são doces recordações; Graça Aranha (MA), onde nasci, e seus caixões azuis de bebês, que ainda brotam como cogumelos, ainda dói, mas afaga meu peito; São Luís, com a poesia e sangue escravo que exalam dos sobrados de azulejos, sacadas e mirantes, foi o palco de minha vida de estudante, onde me fiz médica; Imperatriz (MA), que me acolheu em seu ventre laboral, criei raízes, enterrei lá meus mortos queridos, é minha casa, onde volto, sempre, levando flores, e reabasteço as energias. O resto é lucro, a envolver minha prole de cinco. Morar na linda Belo Horizonte, por exemplo.
Quantas pessoas podem contar uma história assim? Se são privilégios, eu os construí, com gana e garra. Como não honrar conquistas exuberantemente belas? Tenho a convicção que sou apenas usufrutuária do mundo. Assim sendo, tenho o dever moral de legá-lo bem melhor do que ele foi para mim às gerações futuras. Portanto, para mim, lutar é um dever moral. À segunda indagação, respondo recontando uma história prenhe de simbolismos. Foi em 8 de março de 1857 que 129 operárias de uma indústria têxtil de Nova York, a Fábrica Cotton, morreram queimadas. Em greve contra as péssimas condições de trabalho e exigindo melhores salários e redução da jornada de trabalho de 14 para dez horas, a resposta dos patrões foi fechar a fábrica e atear fogo no prédio ocupado.
Um dos meus ritos de passagem na travessia da vida foi a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo (Durban, 2001). Poderia contar do que vi a partir de muitos lugares: de minha esquina de sertaneja negra; de minha esquina de anti-racista; de minha esquina de feminista; de minha esquina de comunista; e de minha esquina de médica, pois delas miro e vislumbro o pulso e o pulsar da vida: a cara oficial do mundo (os governos) é racista, machista e intolerante. E, por tabela, as sociedades são racistas, xenófobas, machistas ou intolerantes. Ou tudo isso junto. Como não lutar contra tantas mazelas?
Fatima Oliveira é médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe. Foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz, em 2005