Em entrevista exclusiva ao Sindipetro-SP, o professor de Direito Econômico da USP aponta que não há qualquer obstáculo jurídico nas nacionalizações e reestatizações, mas pondera: “elas dependem de forte apoio popular”
[Da imprensa do Sindipetro Unificado SP | Foto: Marcos Santos/USP]
Na tradição privatista liberal, o direito à propriedade é inviolável. Mais do que isso, é considerado imanente, ou seja, possui em si próprio o seu princípio e o seu fim. É justamente esse lugar-comum que o professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Gilberto Bercovici, tenta desconstruir.
Coautor do livro recém lançado “Nacionalização: necessidade e possibilidades”, escrito em parceria com o professor de Direito do Comércio Internacional da USP, José Augusto Fontoura Costa, Bercovici defende que o caráter da propriedade é funcional, mas não natural – e, justamente por isso, pode retornar ao controle público se necessário.
Neste sentido, o pesquisador aponta que não existe nenhum empecilho jurídico, nacional ou internacional, para a realização de nacionalizações ou reestatizações de propriedades que sejam do interesse do conjunto da população.
Em artigo publicado no ano passado, o professor resgatou uma metáfora, criada pelo jurista italiano Ugo Mattei, que compara o processo de privatização conduzido pelo governo, com o objetivo de fazer frente às suas necessidades conjunturais – inclusive eleitorais, a uma autorização para que o zelador venda a prataria familiar com o objetivo de suprir seus interesses particulares.
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Na versão brasileira contemporânea, em que se avolumam privatizações de ativos por valores muito abaixo da cotação do mercado, o exemplo ganharia um caráter ainda mais surreal. “No nosso caso, o ‘zelador’ não só vende o que não lhe pertence, como vende abaixo do preço, em um grande acordo entre amigos”, aponta.
Neste cenário, Bercovici coloca as nacionalizações ou reestatizações como pré-condições para recuperação econômica e social do país. “A questão não é se as nacionalizações ocorrerão, mas quando. Elas são condição necessária para a retomada do desenvolvimento do país. Obviamente, para tanto, elas dependem de forte apoio popular para que os políticos possam efetivá-las”, pondera.
E, caso elas realmente se concretizem, o acadêmico garante que não haverá nenhuma retaliação internacional como, muitas vezes, coloca-se como principal argumento de analistas ao comentar esses temas. Para justificar essa previsão, ele elenca exemplos históricos como a nacionalização, em 2012, da petrolífera YPF, pertencente até então à empresa espanhola Repsol.
“Quando ocorrerem as nacionalizações, não se preocupem, não haverá desembarque de tropas americanas, europeias ou chinesas em qualquer parte do território nacional. O que haverá, será a grita da grande imprensa corporativa que defende os interesses econômicos do grande capital”, opina.
Confira abaixo a entrevista na íntegra:
Há um ano, você publicou um texto, em coautoria com o presidente da AEPET, Felipe Coutinho, no qual faz uma defesa das nacionalizações e reestatizações. Neste momento, de privatizações em série, principalmente no setor energético, você acha possível pautar efetivamente essas propostas ou elas viriam com uma mudança da conjuntura política – incluindo a troca de governo?
As nacionalizações e reestatizações são absolutamente necessárias para a reestruturação e reconstrução da economia do país. Além deste texto, publiquei recentemente, em coautoria com o prof. José Augusto Fontoura Costa, o livro “Nacionalização: necessidade e possibilidades” (São Paulo, Ed. Contracorrente, 2021), em que demonstramos que não há nenhum obstáculo jurídico, seja interno ou externo, a uma eventual nacionalização ou reestatização. A questão não é se as nacionalizações ocorrerão, mas quando. Elas são condição necessária para a retomada do desenvolvimento do país.
Todas as pesquisas de opinião indicam que há um forte repúdio popular às privatizações
Obviamente, para tanto, elas dependem de forte apoio popular para que os políticos possam efetivá-las. Todas as pesquisas de opinião indicam que há um forte repúdio popular às privatizações. Campanhas eleitorais anteriores também deixaram esta posição clara. Portanto, é necessário que os candidatos às próximas eleições tragam este tema explicitamente ao debate para que possam ter a legitimidade necessária para efetivar as nacionalizações e reestatizações que o país seguramente irá precisar.
No texto, vocês citam a proposta de realização de referendos revogatórios das privatizações. Como eles seriam realizados? Existem precedentes na história brasileira ou mundial de referendos desse tipo?
Existem vários exemplos de referendos sobre temas de privatização ou estatização de vários setores. Na Itália, por exemplo, foi realizado em 2011 um referendo sobre a privatização da água, que foi rechaçada por mais de 90% dos votantes. Outro exemplo, no início dos anos 2000, foi um referendo sobre a privatização da companhia estatal de petróleo uruguaia (ANCAP), que também foi rejeitada pelos eleitores. No Brasil, os setores conservadores historicamente bloqueiam qualquer tipo de manifestação popular sobre estes temas, ainda que tais instrumentos estejam previstos na Constituição.
A realização de referendo sobre o processo de privatização é possível pela nossa Constituição e seria uma forma de ganhar legitimidade para uma eventual reversão das privatizações
O exemplo mais recente é do Rio Grande do Sul, em que a constituição estadual previa a obrigatoriedade da realização de plebiscito sobre a privatização de empresas estatais, medida esta que foi retirada do texto constitucional após intenso esforço do atual governador, Eduardo Leite, que tem por programa a privatização de todas as empresas estatais gaúchas. A realização de referendo sobre o processo de privatização é possível pela nossa Constituição e seria uma forma de ganhar legitimidade para uma eventual reversão das privatizações, mas esta legitimidade popular também poderia ser obtida pela eleição de um candidato com um programa manifestamente nacionalista e popular.
No artigo, vocês resgatam um exemplo do jurista italiano Ugo Mattei, de que autorizar um governo a vender livremente os bens de todos os cidadãos para fazer frente às necessidades contingentes e conjunturais seria tão irresponsável como autorizar, no plano familiar, que o zelador vendesse os bens de maior valor da casa, como a prataria, para suprir necessidades particulares. No caso do Brasil, poderíamos acrescentar que o zelador tem vendido itens da prataria por menos da metade do preço…
As pessoas devem ter consciência que as empresas estatais e os bens públicos pertencem ao povo e não aos governantes. Os governantes são meros gestores do patrimônio público, não podem dilapidá-lo ao seu bel prazer. No Brasil dos últimos tempos, infelizmente, temos visto não só a dilapidação do patrimônio público, mas a sua entrega a preço vil, abaixo dos preços costumeiramente praticados no mercado, e violando a própria legislação que regula as privatizações desde o governo FHC, como, por exemplo, a venda de ativos de empresas como a Petrobrás, sem nenhum tipo de licitação ou concorrência pública. Em resumo, no nosso caso, o “zelador” não só vende o que não lhe pertence, como vende abaixo do preço, em um grande acordo entre amigos.
Casos como o da venda da Refinaria Landulpho Alves, vendida pela metade do preço para um grupo econômico dos Emirados Árabes, necessitaria de referendos para ser revogada ou existe algum outro dispositivo jurídico?
Para a realização de qualquer nacionalização ou reestatização não há necessidade de referendo. A decisão é política e pode se dar sob as mais variadas formas jurídicas, desde anulação da venda pela via judicial até a desapropriação pura e simples. A forma pela qual a nacionalização ocorrerá, dependerá de cada caso. Na hipótese de prestação de serviços públicos, por exemplo, geralmente ocorre a encampação e a retomada da concessão por parte do Estado. Em outros casos, a legislação pode obrigar a nacionalização do setor, impedindo que empresas privadas continuem a operar naquela determinada atividade, como era o caso do petróleo até 1995. Ou seja, a forma jurídica não é impeditivo para a realização das nacionalizações.
Grande parte da imprensa, do governo e do empresariado afirma repetidamente que o Brasil sempre cumpriu seus contratos. Caso esses referendos sejam realizados, e as privatizações sejam revogadas, você acredita que pode haver alguma reação internacional?
O argumento do respeito eterno aos contratos é uma falácia. Os contratos são instrumentos jurídicos que facilitam a realização de determinadas operações econômicas. Os contratos não são imutáveis, são adaptados às condições objetivas de cada momento, em cada lugar. Um exemplo recente de mudança radical do sistema contratual no Brasil foi a adoção do Código de Defesa do Consumidor em 1990. É óbvio que no caso de uma nacionalização ou reestatização, o acionista da empresa ou titular dos bens ficará insatisfeito e terá o direito de reclamar. Historicamente, há vários exemplos.
Quando ocorrerem as nacionalizações, não se preocupem, não haverá desembarque de tropas americanas, europeias ou chinesas em qualquer parte do território nacional
Recentemente, a Argentina reestatizou sua empresa petrolífera (YPF), que estava nas mãos de uma multinacional espanhola. Os espanhóis não gostaram, reclamaram, protestaram. A grande imprensa fez um escândalo, mas o governo argentino manteve sua decisão, negociou com a empresa espanhola uma indenização – bem menor que a pleiteada – e a reestatização foi efetivada. Não houve qualquer tipo de retaliação internacional ou ameaça de invasão, como alguns aqui no Brasil gostam de alardear que ocorreria em caso de reversão das privatizações. Quando ocorrerem as nacionalizações, não se preocupem, não haverá desembarque de tropas americanas, europeias ou chinesas em qualquer parte do território nacional. O que haverá, será a grita da grande imprensa corporativa que defende os interesses econômicos do grande capital.
Atualmente, o presidente da Petrobrás é um general de quatro estrelas, que tem sido responsável por comandar uma série de privatizações. Como você avalia o papel dos militares no atual governo, autodeclarado liberal do ponto de vista econômico? Você enxerga uma inflexão histórica dos militares em relação às estatais?
Precisamos deixar claro, em primeiro lugar, que a ala nacionalista das forças armadas foi derrotada com o golpe de 1964. Quem deu o golpe foi a ala apoiada explicitamente pelos Estados Unidos e que expurgou os nacionalistas de suas fileiras. O regime militar brasileiro favoreceu o capital estrangeiro no que pôde, atraiu multinacionais para o país e usava o nacionalismo como mera retórica. Não privatizaram porque não era uma política praticada na época, mas, não nos esqueçamos que a economia era comandada pelos principais representantes do liberalismo brasileiro: Octávio Gouvêa de Bulhões, Roberto Campos, Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen, entre outros.
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Desde então, a formação preponderante no setor militar brasileiro é de alinhamento automático aos Estados Unidos e de defesa meramente formal do território nacional. Os militares, infelizmente, não têm qualquer preocupação desenvolvimentista ou nacionalista. Tanto que sabotaram a recente reestruturação da indústria de defesa no país. Se eles não estão preocupados com o controle nacional da defesa, o que dirá do petróleo, da energia, das águas, das comunicações, etc.