Por Willian Nozaki, cientista político, economista e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. e Rodrigo Pimentel Ferreira Leão, economista, com passagem pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ambos integram o Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas para o Setor de Óleo e Gás (GEEP/FUP)
Nesta semana, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realizou Audiência Pública para compilar subsídios a fim de editar “ato regulatório que disciplinará os critérios, requisitos e procedimentos aplicáveis à Isenção de cumprimento da obrigação de Conteúdo Local, bem como as regras gerais dos Ajustes de percentual de Conteúdo Local comprometido e das Transferências de Excedente de Conteúdo Local, relativos aos Contratos de Concessão a partir da Sétima até a Décima Terceira Rodada de Licitações, de Cessão Onerosa e da Primeira Rodada de Partilha de Produção dos blocos de exploração de petróleo e gás natural”.
Essa audiência pública é mais uma etapa do processo de mudanças nos atos regulatórios do Conteúdo Local (CL) proposta pela ANP. No final do mês de junho, a agência divulgou a Nota Técnica 01/2017 que expõe os motivos e a redação da minuta de Resolução que institui a possibilidade de Isenção de cumprimento da obrigação de Conteúdo Local, bem como as regras gerais dos Ajustes de percentual de Conteúdo Local comprometido e das Transferências de Excedente de Conteúdo Local nas rodadas mencionadas.
Embora a Nota Técnica da ANP n. 01/2017 reconheça que a atual política de conteúdo local influencie fortemente nos investimentos prévios realizados pelos fornecedores brasileiros para atendimento da demanda futura, a ANP alega que existem três motivos “mais relevantes” para estruturar uma regra que autorize a isenção, ajuste ou transferência da realização de conteúdo local, antes permitidos apenas como casos de excepcionalidades. A ANP alega que essas mudanças seriam necessárias haja vista os seguintes motivos: 1) a banalização do cumprimento de conteúdos locais estabelecidos estaria fragilizando a indução da demanda pensada originalmente; 2) o grande número de pedidos de isenção apontaria para sua utilização de forma distorcida, fato que chamou a atenção da ANP e do Tribunal de Contas da União (TCU); e 3) as dificuldades enfrentadas pelas operadoras para o atingimento dos percentuais estabelecidos tendo em vista crise enfrentada pelo Brasil.
Partindo dessas premissas, a ANP apresentou uma minuta dos atos regulatórios do CL que permite que as operadoras solicitem a isenção, ajuste ou transferência do conteúdo a partir dos seguintes critérios: i) sobrepreço ou prazo excessivo para atendimento das demandas dos operadores e; ii) existência de novas tecnologias no mercado e internacional. No entanto, a forma como foi construída a minuta permite que casos tidos como excepcionais possam se generalizar. Isto é, na prática, o que se propõe é uma liberalização do cumprimento dos percentuais mínimos de conteúdo local.
Isso porque, em primeiro lugar, a minuta apresentada não determina o que seria um prazo demasiadamente longo para que os fornecedores brasileiros possam ser “substituídos” por estrangeiros, bem como desconsidera na análise os prazos dos serviços pós-vendas (e de todo processo produtivo) que podem ser muito mais céleres se atendidos por produtores locais do que por estrangeiros[4]. E, em segundo lugar, ignora a existência de uma miríade de tecnologias do setor, bem como o próprio processo de funcionamento do processo técnico – que exige capacidade prévia e desenvolvimento de know-how para o seu desenvolvimento. A existência de um rol imenso de tecnologia nesse setor impõe uma ampla dificuldade de ser especificado dentro uma legislação. Ou seja, dado o volume de tecnologia no setor petróleo, há uma grande dificuldade de especificar quais tecnologias podem habilitar uma empresa de abrir mão do cumprimento do conteúdo local.[5]
No entanto, mesmo que todas essas pendências fossem solucionadas, a minuta traz graves riscos de natureza jurídica e econômica em relação ao desenvolvimento da cadeia de petróleo e gás, incluindo seus fornecedores.
Sobre a questão jurídica, ao redefinir o percentual mínimo de conteúdo local em leilões já realizados, fere-se o instituto do direito adquirido, assegurado no artigo quinto do texto constitucional e elevado à cláusula pétrea no artigo sessenta do mesmo documento. Nenhum marco regulatório setorial tem licença jurídica para arbitrar normativas que se sobreponham ou que caminhem na contramão do código máximo do nosso direito que é a Constituição Federal de 1988.
Ao tentar aplicar uma mudança retroativa nos contratos já firmados, a nova normativa da ANP atenta contra os direitos constitucionais adquiridos e abre precedentes para a instauração de uma insegurança jurídica, regulatória e institucional. A nova diretriz de flexibilização e encolhimento da política de conteúdo local não pode servir de pretexto para a criação de um ambiente que viole a segurança jurídica em relação aos contratos já realizados. Tal medida fragiliza o conjunto da institucionalidade dos contratos realizados nesse setor.
Sobre a questão econômica, a Nota Técnica 01/2017 da ANP, embora faça uma breve referência ao tema, não trata com devido cuidado o papel da política de conteúdo local no longo prazo, uma vez que tal politica tem uma função estrutural para mitigar os riscos do crescimento econômico baseado em recursos naturais. . O aumento das divisas, decorrentes das exportações de recursos naturais, provoca uma forte valorização da moeda nacional que combinada com o nao incentivo ao desenvolvimento da indústria local e, consequentemente, reduz a competitividade da indústria de transformação nacional, diminuindo a capacidade de geração de emprego e de progresso técnico local. Isso pode ser mitigado ou revertido por meio da utilização de políticas industriais e de conteúdo local.
As experiências internacionais, inclusive, apontam que, logo após grandes descobertas de petróleo, os países devem utilizar tais políticas como forma de organizar a incipiente indústria petrolífera junto com outras cadeias produtivas.[6] Mesmo que hajam possíveis ineficiências iniciais, tais políticas são cruciais para consolidar novos setores industriais no longo prazo. Em outras palavras, obviamente que esse processo não é rápido e automático sendo necessário, num primeiro momento, suportar um certo grau de “ineficiência”. Essa política implica geralmente, no começo, um sobrepreço e prazos mais elásticos em troca do desenvolvimento da indústria nacional. Porém, o sobrepreço e os prazos tendem a ser reduzidos ao longo do tempo com os ganhos economia de escala (reduzindo os custos unitários) e em desenvolvimento tecnológico no ambiente de produção.
Mais grave, caso isso não ocorra, há um risco de se estabelecer um crescimento baseado em recursos naturais que, ao longo tempo, gera desincentivos progressivos para o desenvolvimento de outros segmentos industriais. As interrupções abruptas desse tipo de política impossibilitam a criação de progresso técnico e o desenvolvimento de novas cadeias produtivas, no longo prazo, e gera um ciclo fortemente negativo em investimentos projetos no médio prazo.
Ao invés de ser uma exceção, agora a isenção, o ajuste e/ou transferência do conteúdo local passam a ser uma regra, o que deve induzir a importação de equipamentos, máquinas e tecnologia no atendimento da demanda local. No caso de importação tecnológica, essas mudanças não estipulam nenhum condicionante de transferência (das tecnologias estrangeiras para o país) e, muito menos, preservam os clusters já formado no país entre universidades e empresas. Desse modo, pode-se observar um completo desmonte desses clusters e impedir a expansão da cadeia produtiva e técnica no Brasil.
Portanto, a atual mudança sugerida pela ANP, além de apresentar falhas intrínsecas a própria regulamentação proposta – na questão dos prazos e das novas tecnologias –, trata de forma irrelevante a insegurança jurídica que pode emergir nesse processo, bem como uma desmobilização da cadeia de investimentos dos fornecedores de petróleo e gás. Enquanto países como Noruega, Inglaterra e Coreia do Sul utilizaram essas politicas por décadas criando grandes players globais, no Brasil, o retrocesso impede qualquer avaliação mais séria de uma politica ainda incipiente.
[1] Os autores agradecem as contribuições da doutora da Universidade Federal de Santa Catarina, Paola Azevedo, e do economista do DIEESE, Cloviomar Cararine. Eventuais erros e omissões são de exclusiva responsabilidade dos autores.
[2] Mestre em desenvolvimento econômico (IE/UNICAMP). Foi gestor de planejamento da Fundação Petrobras de Seguridade Social (Petros). Atualmente, é pesquisador da Cátedra Celso Furtado/FESP-SP e integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas (GEEP) da FUP
[3] Professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e integrante do Grupo de Estudos Estratégicos Petroleiros (GEEP) da FUP.
[4] A minuta de nova legislação proposta na Nota Técnica 01/2017 pela ANP, em seu artigo 3º, afirma que “a ANP poderá (…) autorizar a exoneração do compromisso de Conteúdo Local, em relação à contratação de determinado bem ou serviço, na hipótese de (…) proposta de fornecedores brasileiros com prazos de entrega excessivos em relação a congêneres não brasileiros”. No artigo 5º, a ANP detalha como se aplica a isenção do cumprimento de conteúdo local no caso da verificação de prazos de entrega excessivos: “a hipótese de prazo excessivo (…) será analisada pela ANP de acordo com as características da contratação, devendo o Operador demonstrar no seu pedido que a diferença de prazos de entrega entre o fornecedor brasileiro e os fornecedores estrangeiro compromete o cronograma de atividades proposto”.
[5] Os prêmios da ANP de Inovação 2017 e 2016 (finalistas e premiados) e a pesquisa realizada pela Lloyd’s Register Energy’s Oil and Gas (apoiada pelo Instituto Brasileiro de Biocombustíveis), por exemplo, apontam o volume extenso de tecnologias desenvolvida no último período dentro do setor petróleo.
[6] No entanto, existem alternativas para o enfretamento desses desafios e dependem fortemente da ação estatal: “todos estes problemas pode (teoricamente) ser evitado se políticas econômicas e industriais abrangentes forem introduzidas (…)”, como lembra o professor da UFRJ, Carlos Medeiros no seu artigo Recursos naturais, nacionalismo e estratégias de desenvolvimento. Analisando os diferentes países que possuem vantagens competitivas em determinados recursos naturais, Inglaterra e Noruega se destacam como casos de sucesso em termos de diversificação produtiva e progresso tecnológica por intermédio das políticas econômicas e industriais, cuja política de conteúdo local (CL) e suas alterações têm um papel central.