Telejornais e jornais impressos violam direito à comunicação, invisibilizam protestos ocorridos no país e suas consequências para a disputa política
[Da revista Carta Capital]
Após quase um ano e meio de silêncio nas ruas, por conta da pandemia do coronavírus, entidades e movimentos progressistas decidiram que era o momento de sair e gritar por #ForaBolsonaro, pedir vacina para todes e lutar a favor da ciência e dos direitos humanos básicos, que têm sido ainda mais violados nesse período tão difícil para o povo brasileiro.
O dia escolhido para a luta foi 29 de maio. Várias cidades brasileiras amanheceram com milhares de manifestantes nas ruas. Como diz o meme que circula nas redes, “se o povo protesta em meio a uma pandemia é porque o governo é mais perigoso que o vírus”. E é mesmo. Muitos dos que foram às manifestações se expressavam pela dor da perda de alguém querido – já são mais de 461 mil mortos só no Brasil -, pela falta de expectativas de vacina para toda a população e pela piora constante dos indicadores sociais.
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Porém, durante e após os protestos deste sábado, um dos direitos mais importantes para a viabilização dos demais foi negado àqueles que foram às ruas: o direito humano à comunicação. Tanto na cobertura ao longo do sábado, quanto nos principais jornais impressos deste domingo 30, o espaço para os protestos foi pequeno. E, em alguns casos, a própria pauta da manifestação foi distorcida.
Manipulação e desinformação
A GloboNews, que por diversas vezes realizou entradas ao vivo de diferentes manifestações – sobretudo durante os protestos contra o governo Dilma, em 2016 –, não adotou o mesmo procedimento na manhã deste sábado. O silenciamento da emissora foi percebido e questionado nas redes sociais. A bronca surtiu efeito e o canal então colocou no ar flashes dos protestos que aconteceram no período da tarde. Mas já era possível perceber que a orientação no grupo Globo não seria dar voz aos manifestantes críticos a Bolsonaro. No canal aberto do grupo, o Jornal Hoje tratou do tema em exatos dois minutos ao final do telejornal. No Jornal Nacional, o principal acontecimento do dia recebeu nada mais que três minutos e vinte segundos. No dia seguinte, a capa do impresso O Globo confirma o silenciamento: foi como se o movimento não tivesse existido. Ignorando que um dos maiores protestos acontece no Rio de Janeiro, sede do jornal, o veículo trouxe apenas uma pequena chamada de capa e meia página no conteúdo interno. Pareceu mais importante à redação noticiar que o “PIB reaquece…”, forçando uma leitura de que tudo vai bem no país.
Principal concorrente da Globo e aliada do presidente desde o início da sua gestão, a Rede Record conseguiu ser pior em seu telejornal de sábado: em reportagem de 58 segundos, o Jornal da Record não mencionou o nome do presidente. Disse que ocorreram protestos contra o governo e pela ampliação do auxílio emergencial, escondendo as demais reivindicações. Um dos destaques da edição foi a reportagem: “Na Inglaterra, manifestantes vão às ruas protestar contra o confinamento”.
Enquanto a TV Bandeirantes produziu matéria de um minuto e quinze segundos utilizando-se da narrativa recorrente de reforçar a aversão a quem vai às ruas reivindicar direitos – focou no fechamento de ruas e avenidas e em eventuais transtornos causados ao trânsito, sem mencionar a verdadeira pauta em disputa –, o Jornal do SBT citou que o protesto era contra o governo Bolsonaro, pela ampliação do auxílio emergencial, por mais emprego e pela vacina. Porém, os dois minutos e quinze segundos no telejornal noturno de sábado foram os únicos dedicados pelo canal em toda a sua programação.
Todos os grupos de mídia fizeram menção à violência policial que marcou o final do protesto em Recife, sem explicitar a origem do conflito e os responsáveis. A exceção foi o Jornal da Record, que responsabilizou os manifestantes pelo “conflito”, dizendo que “a manifestação que seguia pacífica terminou em confronto com a polícia quando um grupo tentou seguir por um trajeto não autorizado”.
No domingo, a capa do jornal O Estado de S.Paulo chegou a indignar pela incoerência. Uma pequena chamada em meio a outros assuntos fez referência aos protestos, mas chamando atenção para a aglomeração. Ao mesmo tempo, deu como manchete as “Cidades turísticas que se reinventam para atrair o home office”. No miolo do jornal, meia página para dizer que “protestos têm aglomerações em mais de 200 cidades”.
A Folha de S.Paulo foi o único impresso de circulação nacional que deu destaque na capa para as manifestações do #29M. A chamada “Milhares saem às ruas contra Bolsonaro pelo país” veio acompanhada de uma foto aérea da Avenida Paulista, que teve dez quarteirões tomados pelos manifestantes. Em duas páginas completas do jornal, a cobertura tratou dos temas principais do ato e abriu espaço para relatar a violência da polícia do Recife e o caso da vereadora Liana Cirne (PT), agredida com spray de pimenta diretamente no rosto por um policial depois de já ter se identificado.
No dia dos protestos, o jornal publicou editorial intitulado “Novidades nas ruas”, em que destacava o alívio em ver vozes dissonantes ao presidente ocupando também o espaço público. Porém, na busca por viabilizar uma terceira via trouxe de volta a narrativa antipetista e demonstrou preocupação com as pautas da esquerda. A Folha também marcou uma divisão entre sindicatos e movimentos sociais e pessoas que foram aos protestos de forma individual, como se apenas estas últimas pudessem ser chamadas de “sociedade civil”.
A cobertura nos estados
Nos impressos estaduais também houve omissão. Neste domingo, muitos jornais optaram por uma capa completamente indiferente aos protestos. Foi o caso do Diário do Nordeste, da Gazeta do Paraná e também do maior jornal do Pará, O Liberal, que sequer citou as manifestações na capa do impresso ou do portal do veículo. Já A Tarde, da Bahia, e O Povo, do Ceará, mencionaram as manifestações em suas capas, mas sem qualquer destaque que pudesse chamar atenção dos leitores.
O Correio Braziliense, jornal de maior circulação em Brasília, foi no sentido contrário, publicando foto com destaque da manifestação na capital, citando as reivindicações por mais vacinas e pela saída de Bolsonaro. Nesta mesma linha seguiram O Estado de Minas, de Minas Gerais, e A Gazeta, do Mato Grosso, com chamada na capa e espaço interno para os protestos.
Já o Jornal do Commercio, de Pernambuco, destacou a violência ocorrida na manifestação no Recife. Com duas fotos de momentos diferentes, uma do ato pacífico e a segunda dos policiais indo para cima das pessoas, publicou a manchete “Aglomeração, violência e PMs afastados”.
Repercussão internacional
Diferentemente da mídia local, a imprensa internacional parece ter entendido a relevância dos atos deste sábado. O jornal britânico The Guardian, por exemplo, estampou imagens da manifestação e falou sobre a crise enfrentada pelo presidente Bolsonaro e sua omissão diante da pandemia, que está sendo investigada agora por uma CPI. A matéria ficou por um bom tempo como destaque dentro do portal do veiculo.
O francês Le Monde destacou que as marchas no Rio de Janeiro começaram em frente ao edifício conhecido como “Balança mas não cai” e que a escolha não parecia ter sido aleatória. Também repercutiram os atos os informativos La Nación, do Uruguai; El Pais, da Espanha; a rede Al Jazeera, do Catar, e a agência de notícias Reuters, que é reproduzida por vários jornais no mundo.
Enquanto isso, a mídia brasileira seguiu incorrendo nos mesmo erros que contribuíram para que Bolsonaro chegasse ao poder em 2018. Ao silenciar os protestos legitimamente organizados pela sociedade civil, as comunicações no Brasil escrevem mais um episódio de sua história de contradição com nossa democracia. Como escreveu o jornalista Xico Sá, em seu perfil no Twitter, “que botem comentaristas contra e a favor (ou isentões) para falar adoidadamente, mas que cubram. Não dá mais pra voltar aos tempos que esconderam as Diretas Já e omitir os fatos. Hoje em dia é impossível a mídia pecar por omissão. Ou joga o jogo ou fica feio pra cacete”. E, sim, ficou feio pra cacete.
Exemplos de como fazer bom jornalismo não faltam. O que falta é espaço na mídia brasileira para dar voz à pluralidade e diversidade da nossa sociedade, e para respeitar o pleno exercício do direito à comunicação no país.