A máscara de Flandres, a liberdade do privilégio e o editorial do Estadão







Os senhores de escravos, sempre ávidos pela disciplina e pela veneração ao seu capital, costumavam impô-la com invulgar violência àquela mão-de-obra que atravessou o oceano. Eram castigos bem peculiares, como o ferro ao pescoço, o ferro ao pé e a máscara de flandres. Tecnologia importada, esta última continha apenas três buracos: dois para ver e um para respirar, fechada atrás da nuca por um cadeado. O objetivo dos escravocratas com tão macabra crueldade, como tão bem descreve Machado de Assis, era fazer com que a vítima se reeducasse, extinguindo seus desvios de conduta por meio da fome, o que a faria abrir mão de vícios como beber e comer alimentos em hora inapropriada. Ou o que seus donos consideravam ainda pior: de privá-los de algum bem, de roubá-los. Era assim que o senhorio entendia qualquer eventual apropriação de diamante pelo “instrumento que fala”. Assim, essa gente de carne preta e osso branco era destratada com perversões, pois não passava de coisa, à disposição da acumulação de riqueza dos seus proprietários, encontrando-se, portanto, sempre sujeita a eventuais sevícias, vistas como processos corretivos. Mecanismo de uma instituição social, os utensílios de ferro eram considerados parte da ordem natural e podiam ser vistos dependurados, à venda, na porta dos comércios. Assim como os jornalões de hoje em dia…

Numa de suas muitas certeiras análises sobre o papel da imprensa como instrumento de dominação política e ideológica, de alienação e inconsciência, de manipulação e empulhação, Karl Marx, de forma mais do que crítica, corrosiva, dizia que alguns cavalheiros – os barões da mídia da época – “para salvar a liberdade especial do privilégio, proíbem a liberdade universal da natureza humana”. E o fazem, dizia, “com uma seriedade quase cômica, uma dignidade quase melancólica e um sentimento quase religioso”. Foi “com a luminosidade de um pântano à meia noite”, apontou o velho barbudo, que os meios de comunicação na “época da estrita observância da censura” – que naquele momento não era empresarial, mas governamental – alcançaram o ápice da mediocridade. Este cume só veio a ser superado bem depois, com a Folha, o Globo e o Estadão negando voz ao contraditório e invisibilizando tudo e todos que considerem nocivo aos seus inconfessáveis desígnios. Então, sublinhou o filósofo, “a imprensa tornou-se vil e só resta saber se a deficiência da razão superava a deficiência de caráter, se a deficiência de forma superava a de conteúdo, ou vice-versa”. Assim como os jornalões de hoje em dia…

Em seu editorial de domingo, 26 de setembro, o mais do que decadente O Estado de São Paulo, da família Mesquita, do alto dos seus 135 anos de luta contra os interesses nacionais e populares, reagiu inconformado às precisas declarações do presidente Lula de que a imprensa "se comporta como um partido político". Para o Estadão, o governo Lula, aprovado por mais de 80% da população, que apostou na valorização do salário mínimo e no fortalecimento do mercado interno para combater – e vencer – os impactos negativos da crise internacional, que ampliou os investimentos públicos nas áreas sociais, que colocou o Estado como peça central do desenvolvimento e da geração de empregos, deve ser removido, pois segundo ele vive uma “escandalosa deterioração moral”. Por que os Mesquita não lembram a quem serviu o deputado Hildebrando Pascoal e sua motosserra, com a qual torturava e assinava opositores, quando garantiu a emenda da reeleição de FHC? Já José Serra, que representa a continuidade do pesadelo neoliberal sofrido nos oito anos anteriores, de capachismo à política de rapina do FMI e do Banco Mundial, de assalto ao patrimônio público, de privatização, desnacionalização, arrocho e precarização de direitos, deve ser apoiado “não apenas pelos méritos do candidato, por seu currículo exemplar de homem público e pelo que ele pode representar para a recondução do País ao desenvolvimento econômico e social pautado por valores éticos”. “O apoio deve-se também à convicção de que o candidato Serra é o que tem melhor possibilidade de evitar um grande mal para o País”, acrescenta o editorial, ao qual só citaremos até aqui, para poupar o leitor. Fel puro, mentiras cavalares. Assim como os jornalões de hoje em dia…

Nesta reta final, os principais jornalões do país se alinham como bois no caminho do matadouro, mugindo sem descanso enquanto o abate não vem. A bandeira da democratização da comunicação, felizmente, abre espaço entre os lutadores do bom combate, e se afirma na força da organização e da consciência de milhões, que viram concessões públicas, como são as emissoras de rádio e televisão, serem transformadas em feudos. Sentiram na pele o peso da criminalização dos movimentos sociais. Do apoio à repressão aos professores, do aplauso e financiamento aos torturadores, como no caso da Folha de São Paulo. Hoje, num misto de desonestidade e destempero tentam, de todas as formas, levar Serra ao segundo turno. Na verdade, será o abraço do afogado. No fundo do mar, verão que se merecem. Enquanto isso, ecoa desde 1988, as palavras do então deputado e hoje ministro aposentado do Superior Tribunal Militar (STM), Flávio Bierrenbach: "Serra entrou pobre na Secretaria de Planejamento do Governo Montoro e saiu rico. Ele usa o poder de forma cruel, corrupta e prepotente. Poucos o conhecem. Engana muita gente. Prejudicou a muitos dos seus companheiros. Uma ambição sem limite. Uma sede de poder sem nenhum freio". Em suma, um personagem sem passado, sem presente e sem futuro. Assim como os jornalões de hoje em dia…