“A luta agora é pela alimentação adequada”, afirma pesquisador em entrevista sobre a saída do Brasil do mapa da fome

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Francisco Menezes é um pesquisador daqueles cuja vida se entrelaça com um tema de estudo e militância. Dificilmente abandona o tom doce na fala e, quando acontece, o mais provável é que o assunto seja a alimentação dos brasileiros e a luta ampla pelo combate à pobreza. Nesse campo, Chico Menezes, como é conhecido, é autoridade reconhecida em diferentes fóruns. Tem sempre olhar crítico e nunca comemora vitória antes do tempo, mesmo que ele mesmo seja parte da história. Assim foi ao receber a notícia amplamente divulgada essa semana, de que o Brasil superou a fome, batendo a Meta dos Objetivos do Milênio para este tema. O dado é da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), no relatório “O Estado da segurança alimentar no mundo”, com um capítulo focado no Brasil. O documento é bastante direto, ao apontar o Brasil como referência no combate à fome e à extrema pobreza no mundo, ressaltando programas como o Fome Zero e o Bolsa-Família, além da política de compra direta de alimentos de pequenos produtores, cuja maior referência é o Plano de Aquisição de Alimentos (PAA). O país reduziu à metade o número de pessoas que não comem o mínimo indicado por dia. Atualmente, 1,7% da população está nessa condição. Certamente, a notícia deve ser comemorada. Mas, em vez de aplacar a luta, os dados devem servir para a continuidade para arregaçar as mangas. “O compromisso agora é para além do mínimo, é por uma alimentação saudável e adequada para todos os brasileiros”, enfatizou. Chico Menezes -ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), pesquisador no Ibase e Action Aid Brasil – deixou claro que o debate da segurança alimentar deve ser aprofundado, em um momento no qual a obesidade, por exemplo, cresce entre todas as camadas sociais brasileiras. E faz uma análise que separa o joio do trigo nas políticas públicas. O diagnóstico é que, se por um lado o governo federal tem políticas que permitiram essa redução drástica na fome e na condição de pobreza, por outro, algumas políticas vão no sentido contrário. O que significa, então, a afirmação de que a fome acabou? É esse o fio condutor desta entrevista com Menezes, homem que iniciou a militância pelo direito à alimentação nos anos 1980 e atuou ao lado de Betinho no Ibase.

Confira a entrevista publicada originalmente no Canal Ibase

 A FAO fez uma afirmação bastante relevante esta semana: o Brasil superou o problema da fome. Esse dado posiciona de uma vez por todas o país como referência no tema. Mas de fato o que ele significa, como você o lê?

 É real, é uma vitória. Em primeiro lugar, havia um compromisso dos países dentro dos chamados Objetivos do Milênio. A meta número 1 era acabar com a fome e a miséria. O Brasil bateu estes números e isso já sabíamos. Mesmo assim, claro, é de se comemorar esse relatório, pois é um resultado muito significativo, fruto de uma combinação de políticas. Mas é preciso tomar alguns cuidados. Primeiro, prefiro hoje em dia falar da vulnerabilidade à condição de segurança alimentar. A imagem do famélico, bem midiatizada antigamente, não faz mais sentido. No Brasil, casos de pessoas que passam fome diariamente são bem mais residuais, abandonamos o fenômeno generalizado da fome que houve no passado. Mas há vários desafios na compreensão desse cenário da alimentação no Brasil. Sobre os dados, existe o esforço da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, que sai junto com as Pesquisas de Amostragem por Domicílios (PNAD), do IBGE. Não é, porém, suficiente, precisávamos fazer essa contagem com menos intervalo. E esse dado deve servir para impulsionar. O quadro de fome absoluta pode ter desaparecido, mas a luta continua e agora é outra. Hoje lutamos por uma alimentação saudável e adequada, o que significa não apenas medir se as pessoas comem ou não, mas o que elas comem, o acesso que têm a alimentos saudáveis, à possibilidade de plantar, ou de comprar, à informação sobre o assunto. Enfim, a segurança alimentar não é tema em si mesmo apenas, é transversal, depende de políticas em diversas áreas.

Segundo a FAO, no período 1990-1992, 14,8% dos brasileiros passavam fome, o equivalente a 22,5 milhões de pessoas na época. A população cresceu e mesmo assim o número caiu muito. Sobre o relatório, Jorge Chediek, representante do Programa das Naçoes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) afirmou que “o combate à fome é uma questão política, de vontade e interesses de governantes”. A quais políticas você atribui esta redução drástica da fome no país?

Há programas que enfrentam diretamente a questão do acesso à alimentação e buscam reduzir essa insuficiência. Eu destacaria sobretudo os programas que possibilitam aumentar renda das famílias ou indivíduos, como o Bolsa-Família. Mas não só ele. Como houve aumento do salário mínimo e a maior oferta de empregos, isso afetou positivamente a vida da população mais pobre do país. O salário mínimo não tem efeito apenas na compra do alimento. Mas, por exemplo, se alguém ganha um pouco mais e resolve fazer uma reforma na casa, chama um conhecido para fazer um bico. Esse trabalho não é medido no dado formal, mas existe, claro. E esta outra pessoa também poderá ter acesso a alimentos. Cada mudança no salário mínimo causa muito impacto nas populações das camadas mais pobres. Além disso, há políticas específicas de segurança alimentar que tiveram resultados significativos, que fazem a interligação da produção de alimentos com o consumo.

Você se refere, por exemplo, ao Programa de Aquisição de Alimentos, o PAA? Ele foi alvo de denúncias nunca confirmadas, mas, a despeito de interesses políticos, ele é quase unanimidade entre especialistas do tema e também nos movimentos sociais que lutam pelo acesso à alimentação adequada. Por quê?

O PAA consiste na compra direta de alimentos de agricultores familiares. Parece pouco, mas não é. A maior parte dos alimentos no Brasil é comprada indiretamente e quem perde é o pequeno produtor. Sem falar na desigualdade para competir com grandes cadeias produtoras de alimentos. O PAA propõe a compra de alimentos para merenda escolar, outras instituições dos governos e para restaurantes populares, por exemplo. Estive em Salvador recentemente e fiz questão de saber como estava a comida no restaurante popular. Tinha arroz, feijão, aipim, verduras e estava gostoso. Custava R$ 1 e os alimentos tinham vindo direto dos produtores. Esses restaurantes existem em mais de 300 cidades brasileiras. Em Salvador, são mais de duas mil refeições só na hora do almoço. Nesse caso, a população de rua é o público-alvo, mas na ponta o agricultor também está sendo beneficiado.

 Nas você disse que é preciso ter cuidado com essa euforia em torno da notícia divulgada pela ONU. Na prática, não é possível afirmar que as pessoas estão necessariamente comendo bem, certo? Estamos falando de dados, estatísticas, mas na verdade o assunto é sobre o direito mais básico de todos, que garante a sobrevivência. É sobre a vida e as possibilidades de acesso e escolhas das pessoas…

Sem dúvida. Se resolvemos suficientemente bem a questão do acesso, não se pode falar o mesmo da qualidade dos alimentos. Existe um grande desbalanceamento nutricional. Boa parte da população ainda se alimenta mal, não só por desconhecimento sobre a educação alimentar adequada, mas também porque alimento mais saudável é mais caro. As comidas prontas, salgadinhos e os alimentos de fast food, têm baixíssimo teor nutricional, mas são baratos muitas vezes. São alimentos densamente calóricos, com alto teor de gordura e sódio. Isso nos põe frente a um novo drama: sobrepeso. A obesidade está crescendo, especialmente devido à má alimentação. Nem sempre as pessoas estão comendo em excesso. Este é um aspecto com o qual precisamos tomar um grande cuidado, porque há muitas corporações que dominam esta área. Esse problema existe em várias camadas da sociedade.

Nesse caso, o problema é amplo… Por exemplo, se de um lado o governo impulsiona a agricultura familiar e a transição para a agroecologia, por outro dá grandes incentivos ao agronegócio, dificultando a manutenção do trabalho e território dos camponeses. Além disso, o acesso à terra também é outro tema transversal. Se as pessoas não têm terra, não podem plantar e, com menos oferta, os alimentos mais saudáveis são os mais caros. Ou seja, embora tenha acertado em muitos pontos relativos à alimentação, as políticas públicas atuais trazem graves problemas para o desafio da segurança alimentar, você concorda?

O agronegócio tem uma finalidade, que é o lucro. Por isso, lança mão, por exemplo, de agrotóxicos, que não fazem bem aos agricultores nem aos consumidores. É só para produzir mais e mais rápido. Se falamos de direito à alimentação, não podemos ter expectativas de que o agronegócio desempenhe este papel. Não é para isso que ele existe, é preciso compreender esse ponto. Há também a questão agrária que está envolvida. Há várias implicações na falta de uma reforma agrária e na pressão de corporações sobre territórios ocupados por agricultores. Há o empobrecimento da pequena agricultura, com terras cada vez menores para aqueles que continuam no campo poderem plantar. O que está em curso uma disputa de modelo de desenvolvimento na agricultura. E há uma força grande da bancada ruralista no Congresso Nacional. É importante uma transição de forma a fortalecera agricultura familiar, inclusive em bases agroecológicas. Isso tem a ver diretamente com a questão da alimentação adequada e combate à pobreza.

Se fizermos alguns recortes específicos, de raça, por exemplo, e de territórios e etnias, é possível perceber que essa condição de vulnerabilidade à fome é mais uma expressão de desigualdade no nosso país…

Sim, há populações que vivem sérios riscos, cujo acesso aos alimentos tem sido dificultado, em um processo inverso. É o caso dos povos indígenas, por exemplo. E há, sim, um recorte de raça e gênero. Negros e mulheres constituem populações mais vulneráveis.

Bem antes de ocupar o cargo de presidente do Consea, no início dos anos 2000, você construiu uma história de militância pelo direito à alimentação, ainda na década de 1990, no Ibase, junto com Betinho. Como é para você ver essa mudança?

Bem especial. Na década de 1990, o Ibase teve um papel muito relevante de chamar a sociedade para criar alternativas à situação de fome a qual milhões de brasileiros estavam expostos. Naquele momento, prevalecia um modelo de estado mínimo. Era um modelo de governo neoliberal, que não intervinha em questões essenciais, entre elas a questão alimentar. Junto com o Ação da Cidadania, o Ibase plantou as raízes do que seria a concepção do direito à alimentação. Me lembro do Betinho dizendo: “Se o Estado não vai fazer sua parte, faremos com nossas próprias mãos”. E assim fizemos, colocamos a questão na pauta política e também no dia a dia das pessoas. O que se alterou desde 2002 foi o diálogo com os movimentos sociais e a retomada de políticas públicas como um instrumento de transformação.

 Sua conclusão sobre esses dados é…

Eu caracterizaria como uma conquista. Mas, à medida que você conquista alguma coisa, você quer voar mais alto. Agora a luta é pela alimentação saudável e adequada e pela soberania dos povos, garantindo autonomia sem interferência de grandes corporações que querem dominar a alimentação das pessoas.