Além de abrir mão de um modelo de desenvolvimento, o Brasil pode estar colocando sua soberania em risco ao deixar suas riquezas cada vez mais sob orientação da “mão invisível” do mercado, afrima o pesquisador João Montenegro, em artigo publicado na revista Carta Capital
Por João Montenegro *
Embora haja extrema preocupação no mundo em reduzir a dependência da indústria nacional de óleo e gás da dinâmica de outros países, em função de sua importância para a segurança nacional, o Brasil tem conduzido um amplo processo de liberalização das atividades de exploração, produção, refino e comercialização de óleo e gás natural.
Após medidas como o fim da operação única da Petrobras no pré-sal e a flexibilização das exigências de conteúdo local para construção de plataformas, a abertura hoje se dá por meio da venda de ativos da empresa, incluindo campos petrolíferos, refinarias e gasodutos.
Na medida em que a gestão da atividade petrolífera é crescentemente submetida a interesses privados, mais ela se descola da estratégia de segurança energética brasileira
Tais interesses estão associados, historicamente, às corporações transnacionais detentoras de enorme poder financeiro e político, cuja estratégia no mercado brasileiro, em muitos casos, remete aos objetivos de seus países de origem. Todavia, mais recentemente, tem se notado um aumento de participação de fundos de investimentos no setor de óleo e gás do país, o que tende a acelerar esse descolamento.
Entre os exemplos estão os dos fundos canadenses Brookfield e Caisse de dépôt et placement du Québec (CDPQ), que adquiriram, respectivamente, a Transportadora Associada de Gás (TAG) e a Nova Transportadora do Sudeste (NTS), do árabe Mubadala Capital, que comprou a Refinaria Landulpho Alves (RLAM) e do também canadense F&M Resources, subsidiária integral da Forbes & Manhattan, que fechou a compra da SIX.
Algumas das pequenas e médias empresas que estão comprando ativos terrestres e marítimos da Petrobras também são fortemente dependentes ou, na prática, controladas por fundos de investimentos, como a Trident Energy (empresa que tem adquirido várias áreas da Bacia de Campos), com o Warburg Pincus.
A empresa também vendeu ativos de energia elétrica e biocombustíveis para fundos de investimento, como as usinas eólicas Mangue Seco para o FIP Pirineus e Vinci Energia, termelétricas para o Global Participações em Energia, a produtora de etanol Bambuí Bioenergia para o Turdus Participações, e a produtora de biodiesel BSBios para o RP Participações em Biocombustíveis.
O professor e pesquisador da UERJ Roberto Machado Pessanha alerta que as transformações produzidas a partir do controle financeiro sobre as companhias não apenas reforçam o poder do mercado de capitais sobre a produção e o emprego – favorecendo pagamentos em dinheiro aos acionistas e valorização das ações –, como interferem diretamente na produção do espaço onde estão as instalações fixas e as bases produtivas das companhias.
Outro ponto sensível é a potencial ameaça da financeirização à soberania dos estados nacionais. Em 2019, por exemplo, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump tentou utilizar dois fundos sediados no país (BlackRock e Vanguard), que detinham excedentes da renda petrolífera e títulos da dívida da Venezuela, para transferir a gestão dos recursos da presidência da república para a Assembleia Nacional do país sul-americano, favorecendo o então opositor de Nicolás Maduro, Juan Guaidó.
Em maio de 2018, o Brasil decidiu pela extinção do Fundo Soberano do Brasil (FSB), transferindo os recursos de seu patrimônio – constituído por rendas geradas pela produção de petróleo – para o pagamento da dívida pública brasileira, perdendo a oportunidade de “fazer como outros países que possuem riquezas naturais e utilizam há a algum tempo este instrumento de poder do Estado para projetos estratégicos da nação”, observa Pessanha.
Ou seja, além de abrir mão de um modelo de desenvolvimento do setor de óleo e gás pensado como vetor para formação um complexo tecnológico e industrial nacional, o Brasil pode estar colocando sua soberania em risco ao deixar suas riquezas energéticas cada vez mais sob orientação da “mão invisível” do mercado, a qual, em última análise, responde aos interesses de potências estatais globais.
A iniciativa privada pode ter um papel complementar para o desenvolvimento da indústria nacional de petróleo. Mas, ao assumir protagonismo, há um grande risco de os objetivos da indústria brasileira ficarem reféns dos interesses de outros países.
(*) João Montenegro é jornalista, pesquisador e mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ