A economista analisa a atual crise econômica mundial, comparando-a com as demais crises do capitalismo no século 21







Em entrevista publicada originalmente no Portal Carta Maior, a economista e professora, Maria Conceição Tavares, faz uma análise a sobre a crise econômica mundial, comparando-a com as demais crises do capitalismo do século 21. "“Não, não é um quadro como o de 1929. Aquele teve um ápice, com recidivas, mas ensejou um desdobramento político que inauguraria um outro ciclo, com Roosevelt e o New Deal. O que passamos agora é distinto de tudo isso”.

Confira a entrevista:

No caso do Brasil, no que esta crise difere da de 2008 que superamos rapidamente? Dá para usar a mesma receita de então?

É muito difícil (suspira). Primeiro, pela natureza arrastada, enrustida desse longo crepúsculo. Você fica a tomar medidas pontuais. Tenta mitigar a questão do câmbio para evitar a concorrência predatória das importações. Mas tem efeito limitado. Você aperta os controles aqui, mas o dólar está derretendo lá fora. Está derretendo sob o peso da recessão e do imobilismo político de quem deveria tomar as rédeas da situação. O Brasil não tem como impedir que o dólar derreta no sistema financeiro mundial.

Isso foi diferente em 2008…

Em 2008 nós tivemos um efeito oposto; capitais em fuga migraram de várias partes do mundo, de filiais de bancos e multinacionais, para socorrer a quebra das matrizes na Europa e nos EUA. Então o que houve ali foi uma desvalorização cambial; o real ficou mais fraco. Isso facilitou as coisas pelo lado das exportações e da contenção de importações, ainda que quase tenha levado à breca aqueles que especulavam contra a moeda brasileira, fazendo hedge fictício para ganhar na desvalorização. Mas do ponto de vista macroeconômico foi um quadro mais favorável. Hoje é o inverso.

As reservas atuais, da ordem de US$ 340 bilhões, são um alento?

Também há diferenças desfavoráveis nas contas externas. As reservas hoje são basicamente formadas pela conta de capitais; não tanto pelo superávit comercial, como era então. Significa que hoje são a contrapartida de algo fluido, capitais que não sabemos exatamente se representam investimento produtivo, de mais longo curso, ou especulação capaz de escapar abruptamente. Sobretudo, tenho receio porque uma parte considerável desse ingresso é dívida privada. Com a anomalia dos juros, os maiores do mundo – a nossa herança maldita – e a oferta barata e abundante de dinheiro lá fora, nossas empresas se endividaram a rodo. Se houver uma reversão do ciclo, se o dólar se valorizar, o descasamento entre um passivo em dólar e receitas em reais, no caso de quem não exporta, ou exporta pouco, será traumático. Essa contabilidade hoje por certo é mais grave do que o passivo em hedge que quase quebrou grandes grupos brasileiros em 2008.

Então a margem de manobra do governo Dilma é menor?

Estávamos melhor antes. E muito do que fizemos então não dá para fazer agora…

Mas o governo pode…

O governo Dilma poderá agir de forma distinta e contundente se a crise virar o Rubicão; aí tudo é lícito e possível.

Por exemplo?

Por exemplo centralizar o câmbio; controlar importações, remessas, etc.

E enquanto isso não ocorre?

Mas enquanto se arrasta assim, uma crise enrustida, que vai minando, desagregando, sem ser confrontada, fica difícil. Você toma medidas pontuais que se dissolvem.

Há uma superposição de colapso do neoliberalismo com esfarelamento político que realimenta e reproduz o processo?

Veja, é um colapso empírico da agenda do neoliberalismo. Avulta que a coisa é um desastre e os meus colegas economistas dessa cepa, espero, devem estar conscientes disso. Mas que poder têm os economistas? Nenhum. O poder que conta está nas em outras mãos, a dos responsáveis pela crise. Vivemos um colapso neoliberal sob o tacão dos ultraneoliberais. Não estamos falando de gente normal, é preciso entender isso. Não são neoliberais comuns. Meu Deus, o que é isso que estão fazendo nos EUA? É a treva! Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultraneoliberais: isso é a treva! E ela se espalha desagregando, corroendo.

Devemos nos preparar para uma crise longa?

Sem dúvida. Por conta dessa dimensão autofágica que não enseja um desdobramento político à altura, que inaugure um novo ciclo, como foi com Roosevelt e o New Deal em 1929.

As bases sociais do New Deal não existem mais nos EUA?

Não existem mais. Obama é o reflexo disso. É uma liderança intrinsecamente frouxa. Não tem a impulsão trabalhista e progressista que sustentou o New Deal. É frouxo. Seu eleitorado é difuso ah, ótimo, ele se comunica com os eleitores pelo Twitter, etc. E aí? É uma força difusa, desorganizada, estruturalmente à margem do poder. Está fora do poder efetivo no Congresso que é da direita, dos ricos, dos grandes bancos e grandes corporações, como vimos agora no desenho do pacote fiscal. Está fora da indústria também que foi para a China. Esse limbo estrutural é o Obama. Ele pode até ser reeleito, tomara que seja. A alternativa é amedrontadora. Mas isso não mudará a sua natureza frouxa.

Se não existe o componente político que assemelhe essa crise a de 1929, então o que é isso, essa ‘treva’ que estamos vivendo?

Uma treva é uma treva… O que passamos agora é distinto de tudo o que se viu em 1929… Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, como eu disse. Arrastado, latejante, sob o tacão de forças como essas dos ultraneoliberais. Tampouco é um fascismo explícito, porém, como se viu na Europa, em 30. Até porque o nazismo, por exemplo, e isso não abona em nada aquela catástrofe genocida, postulava o crescimento com forte indução estatal. O que se tem hoje é o horror; um vazio político de onde emergem essas criaturas dos EUA, e coisas assemelhadas na Europa. Será uma crise longa, penosa, desagregadora, mais próxima da Depressão do final do século 19…

O declínio de um império, como foi o declínio do poder da Inglaterra no final século 19?

Sim, é um quadro mais próximo daquele. O poder inglês foi sendo contrastado por nações com industrialização mais moderna. Um arranjo com estrutura de integração superior entre a indústria e o capital financeiro e que aos poucos ultrapassaria a hegemonia inglesa. Foi uma quebra, uma inflexão entre o capitalismo concorrencial e o capitalismo monopolista. A Inglaterra, que havia sido a ‘fábrica do mundo’, perdeu o posto para o agigantamento fabril norte-americano e alemão. Isso se arrastou por décadas. Foi uma Depressão, a primeira Depressão que tivemos no capitalismo (durou de 1873 a 1918). Levou à Primeira Guerra, que resultou na Segunda…

Os EUA são a Inglaterra da nossa longa crise… E o novo hegemon?

As forças que se articularam na sociedade norte-americana, basicamente forças conservadoras, de um reacionarismo profundo, não têm condições de produzir uma nova hegemonia propositiva. Claro, eles tem as armas de guerra, ora. Não é pouco, como temos visto. Vão se impor assim por mais tempo. Mas daí não sai um novo hegemon. Vamos caminhar para um poder multilateral, negociado, sujeito a contrapesos que nos livrarão de coisas desse tipo, como a ascendência do Tea Party nos EUA. Uma minoria que irradia a treva para o mundo.