Ato “Pela paz, por liberdade e justiça no campo” denuncia impunidade e cobra reforma agrária

Nas ruas de Rondon do Pará, trabalhadores rurais lembram 11 anos do assassinato de Dezinho, que batalhava pela reforma agrária e pelo direito dos trabalhadores.





CUT

Escrito por Leonardo Severo

 Neste sábado, 26 de novembro, manifestantes tomaram as ruas de Rondon do Pará no ato “Pela paz, por liberdade e justiça no campo”, em honra à memória de José Dutra da Costa (Dezinho), incansável batalhador pela reforma agrária e pelos direitos dos trabalhadores.

“Dezinho acreditava e defendia uma forma de desenvolvimento contrária do que sempre se viu em Rondon. Queria ver as terras públicas repartidas entre as famílias de trabalhadores rurais sem terra para aumentar a produção, a circulação de produtos dos agricultores no mercado local, melhorar a renda e a qualidade de vida dos mais pobres”, lembra a presidenta do Sindicato local, Zudemir dos Santos de Jesus. Mantida sob proteção policial, Nicinha, como é mais conhecida, explicou as muitas razões da homenagem ao líder assassinado, que também foram as que selaram a sua morte.

“Dezinho não concordava que os pobres tivessem que viver amontoados nos bairros em extrema pobreza ou que tivessem que enfrentar o trabalho escravo nas fazendas, carvoarias e serrarias. Por isso, denunciava os grileiros de terras públicas, os latifúndios improdutivos, os utilizadores de mão de obra escrava e os autores de crimes ambientais. Os que enriqueceram com tais práticas em Rondon decretaram a sua morte, pensando que com isso colocariam um fim na sua existência. Mataram o homem, mas suas ideias sobrevivem”, acrescentou dona Maria Joelma, sua viúva, escoltada noite e dia por soldados da Força Nacional.

Situada a mais de 500 quilômetros da capital, Belém, a cidade virou símbolo da impunidade, onde os assassinatos se sucedem, cabendo às mulheres continuarem a luta dos maridos abatidos por pistoleiros a mando dos grandes latifundiários e madeireiros.

A manifestação de sábado foi precedida por uma plenária de mulheres trabalhadoras rurais na sexta-feira à tarde, na qual as lideranças fizeram um resgate da Marcha das Margaridas e de suas bandeiras, mobilização que levou cem mil mulheres a Brasília. “Comprometidas com a justiça no campo, estamos aqui para denunciar o avanço da violência contra a mulher no estado do Pará e no país. Se antes éramos 7% ameaçadas de morte, hoje somos mais de 20%. É preciso dar um basta neste ambiente de terror estabelecido pela grilagem, pelo agronegócio e pelas madeireiras, que vêm banalizando e naturalizando a violência e a devastação”, declarou Carmem Foro, que representou a executiva nacional da CUT no evento.

O clima criado pela prefeita Cristina (PSDB) – filha de Josélio de Barros, dono da fazenda Texagaú, onde foi encontrado um cemitério clandestino com corpos dos trabalhadores rurais fatiados com dentes de motosserra – dispensa maiores comentários. Josélio chegou a ser preso, para sair logo depois pela porta da frente, e nunca mais voltar à prisão.

Com faixas e cartazes, os trabalhadores renovaram o compromisso com a memória e a história, entoando em coro: “Reforma agrária, já” e “Este é o nosso país, esta é a nossa bandeira, é pelo amor desta Pátria, Brasil, que a gente segue em fileira”. Caminhando a seu lado, entre olhares incrédulos de uma parte da população compreensivelmente aterrorizada, atores globais como Letícia Sabatela e Camila Pitanga, membros do Movimento Humanos Direitos, reforçaram o coro contra a impunidade. “Quanto mais matarem, mais o movimento vai crescer, porque matam um homem não sua causa. Chaplin dizia que a liberdade não morrerá enquanto um homem viver por ela”, destacou Osmar Prado.

Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Alberto Broch, a mobilização de Rondon do Pará “coloca na agenda o novo modelo de desenvolvimento que queremos para o país, que será construído com o fortalecimento dos assentamentos”. Broch cobrou dos representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), mais investimentos em politicas públicas que garantam crédito para a produção e recursos para que ela seja transportada e não apodreça, a fim de assegurar alimento farto e barato na mesa do povo brasileiro.

SEM ESTRADA, SEM TRANSPORTE

O problema do escoamento da safra é mais do que angustiante, é trágico. E palpável. Na Feira da Agricultura, o Sindicato de Rondon disponibilizou pequenas bancas para que os assentados pudessem expor seus produtos à população a preços acessíveis e levantar algum dinheiro. Com a chuva do dia anterior, vários veículos atolaram, ficando no caminho montanhas de abóboras e melancias. Perdeu o produtor. Perdeu o consumidor.

Como lembrou a presidenta da CUT-Pará, Miriam Andrade, a ausência de políticas públicas tem inviabilizado os assentamentos, que podem e devem ser fonte de emprego, renda e cidadania. “Como é possível haver desenvolvimento sem estradas e pontes para escoar a produção, sem que o poder público se comprometa, minimamente, com a compra de um percentual da agricultura familiar para a merenda escolar?”, questionou.

A manifestação comandada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, com apoio da CUT, Contag, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), aos poucos foi ganhando corpo, elevando o tom. Exigindo paz, liberdade e justiça no campo, o protesto lembrou nomes de alguns lutadores que tombaram vítimas dos latifundiários na região: João Canuto, Irmã Dorothy, Alfim Fagundes, José Cláudio e Maria do Espírito Santo.

Entre a dor de tantas lembranças, naturalmente se sobressaiu a recordação de José Dutra da Costa, precursor do movimento na cidade. No dia 21 de novembro de 1990, três tiros ceifaram a vida do sindicalista. Dezinho orientava os companheiros a se somar com o Sindicato, a se organizar, a lutar pelo que era seu, a não abaixar a cabeça, a não se deixar ludibriar ou escravizar.  A postura altiva emperrava a engrenagem dos que comandam a economia e a política de Rondon – e de boa parte do Pará.

Dias antes de Delzinho morrer, Décio Barroso Nunes, o Delsão, apontado como o cabeça do consórcio da morte que ordenou o sentenciamento, advertiu o sindicalista de que ele não ia chegar vivo ao Natal.

Contratado para fazer o serviço, Pedro, um dos pistoleiros, foi convencido pelo irmão a não cometer o crime. Afinal, fora um dos tantos assentados beneficiados com a ação de Dezinho. “Sabendo que ao atender a súplica do irmão, estava marcado para morrer, Pedro entregou uma gravação onde Delsão é apontado como ‘o chefão’. Deixa com o irmão fotos da lagoa onde jogava os corpos dos trabalhadores rurais que assassinava a mando dos fazendeiros”, conta Joelma Costa Ferreira, uma das filhas de Dezinho. Logo depois, não foi apenas o arquivo vivo que foi queimado, também o fórum da cidade onde estavam guardadas as fitas cassete, entre outras provas. Ossadas foram levadas a Belém para averiguação e por lá ficaram. Sem respostas.

Até agora, lembram os dirigentes do Sindicato, o pistoleiro Welington Silva é o único dos acusados da morte de Dezinho que foi julgado e condenado. “Quanto aos intermediários do crime, Ygoismar Mariano e Rogério Dias, mesmo com prisão preventiva decretada, a polícia do Pará nunca fez o menor esforço para prender. Domício Neto, o terceiro intermediário, passou poucos meses preso e foi posto em liberdade. O pistoleiro Welington, condenado a 29 anos de prisão, passou pouco mais de seis anos preso e fugiu da penitenciária de Belém, beneficiado por uma decisão judicial que o autorizou a passar o Natal em casa. Nunca mais voltou e a polícia não moveu uma palha para prendê-lo novamente”.

ASSASSINATO SOB ENCOMENDA

A identificação dos que encomendaram o assassinato de Dezinho só foi possível porque, mesmo ferido com três tiros, o sindicalista ainda conseguiu lutar com o pistoleiro, caindo sobre ele numa vala em frente à sua casa. Isso permitiu que os vizinhos capturassem Welington, com dona Maria Joelma impedindo que fosse linchado.

Conforme Francisco de Assis, secretário de Formação e Organização da Fetagri-PA, “o principal acusado de ser o mandante do assassinato, o fazendeiro Delsão, é grileiro de uma área pública de 117 mil hectares, como comprovou a Polícia Federal e o Incra“. Ao lado de Lourival de Sousa, o Perrucha, após mais de uma década do crime, Delsão irá à júri popular no próximo ano em Belém. Com rios de dinheiro, seus advogados impetraram – e conseguiram –  um sem número de recursos no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), adiando o julgamento – e a sentença.

De acordo com o Sindicato, após extraírem ilegalmente a madeira de maior valor, derrubarem a mata nativa para implantar pastagens para criação de gado, os “fazendeiros” da região passaram a estimular a produção de carvão vegetal para as grandes siderúrgicas, fundamentalmente. A lógica é a do trabalho precário e escravo, com abuso da superexploração e baixíssima remuneração, sonegação de impostos, descumprimento da legislação social e trabalhista, além de muita, muitíssima, degradação ambiental. Quem ousa divergir é convidado a se retirar da cidade, antes que tenha o seu corpo “encomendado”.

O deputado federal Beto Faro (PT) cobrou empenho das autoridades, “uma vez que não há confronto, pois o que ocorre aqui é um massacre, onde só morre gente de um lado”. “Queremos ver boi no campo, dendê no campo, mas também queremos ver gente no campo”, sublinhou Faro, acompanhado na manifestação por vários parlamentares da bancada estadual petista.

MANTO DE SILÊNCIO E TERROR

Delsão ou o “chefão”, conforme gravações do pistoleiro Pedro, que acabou morto por não ter entregue a “encomenda”, é conhecido pela postura mafiosa. Orelhas decepadas, gargantas cortadas, cabeças decapitadas, troncos serrados e outras barbaridades se fazem presentes na cidade como um manto de silêncio e terror.

Diante da omissão do governo do Pará em garantir a segurança de Dezinho, quando ainda estava vivo e ameaçado de morte, e a demora da Justiça em punir os assassinos, sua família, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Justiça Global entraram com um processo na Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o Estado brasileiro.

Processado pela OEA, o Estado brasileiro propôs um acordo. A família e as entidades apresentaram então aos governos e ao Judiciário um conjunto de propostas para suspender o processo. Entre elas o pagamento de indenização para a família de Dezinho, a construção de um centro de informática na Vila Galvão, a ampliação da sede do Sindicato – incluindo um centro de qualificação profissional para trabalhadores rurais e urbanos, a construção de poços artesianos nos Projetos de Assentamento Nova Vitória, José Dutra da Costa e Água Branca, e a retomada de terras públicas no município para o assentamento de famílias sem terras.

O acordo previa ainda a obrigação do governo do Pará e do governo federal em construir um memorial em homenagem a Dezinho e, que, em sua inauguração, teriam que fazer um pedido de desculpa formal aos seus familiares.

Em nome do governo brasileiro, Maria Ivonete Barbosa Tamboril, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, fez um caloroso pronunciamento no encerramento do evento de sábado, na Praça da Paz, onde, além da desculpa formal, sublinhou a importância de orquestrar ações conjuntas no âmbito federal para acabar com a impunidade. Um pouco antes, em nome da superintendência do Incra, Ruberval Lopes da Silva havia anunciado a liberação de cerca de dois milhões de reais em linhas de crédito para os assentamentos e a construção de moradias. O coordenador regional do Programa Terra Legal, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Castanheira Alves, anunciou a varredura nas glebas públicas ao lado do Ministério Público Federal, além da liberação dos Contratos de Concessão de Uso (CCU), documentos que dão segurança jurídica aos assentados – por meio do título provisório de posse – e estabelecem obrigações.

Em contrapartida, um representante do governo estadual caiu no ridículo ao declarar do alto do palanque – de onde escafedeu-se rapidamente – que a família de Dezinho receberia insignificantes R$ 40 mil como “indenização”, além de R$ 765,00 mensais como pensão vitalícia. E que o Memorial do líder assassinado seria erguido em Marabá, a cerca de 130 quilômetros de Rondon, quem sabe para não importunar os próceres tucanos locais, bastante vinculados ao rastro de sangue.