A representatividade negra e o “identitarismo” estavam melhor vistos antes do BBB21 ou ficaram piores no imaginário nacional depois dessas primeiras semanas?
[Por Serge Katembera (*), em artigo publicado no The Intercepet Brasil | Foto: Reprodução TV Globo/Intercept]
Que a Globo realize uma edição do reality show Big Brother em 2021, um ano depois do início da pandemia parece com aqueles momentos em que a vida nos prega uma peça. Situação inusitada em que temos um espelhamento de pessoas confinadas: eles, os influenciadores, em busca do 1,5 milhão, e nós aqui, em casa, confinados por causa da pandemia. É bem possível que muitos brasileiros já nem estejam respeitando as recomendações do isolamento social, mas sem dúvida, aquela situação que até poucos tempos atrás nos parecia surreal, quase um ato heroico, não nos é mais estranho. Em 2021, 100% dos brasileiros sabem o que é estar confinado. Estamos, portanto, diante de uma nova relação do público com o reality show.
A particularidade do BBB é o fato dos participantes saberem que estão constantemente sob os olhares dos telespectadores mais engajados. Alguns de vocês leitores lembrarão do filme “O Show de Truman”, uma fantástica crítica contra os reality shows, estrelado por Jim Carrey – seu personagem é um homem que passa os primeiros trinta anos da vida sendo o astro principal deste tipo de programa. Ele, no entanto, desconhece sua situação, o que lhe dá um aspecto de vítima de um sistema podre e perverso. Nossas estrelas de hoje, “confinadas” pela Rede Globo, estão cientes de sua situação e, por isso mesmo, são pessoas extremamente corajosas. Ou loucas. Afinal, a linha que separa a coragem da loucura é tênue. E como diz aquele velho ditado sobre a guerra: “os mais fortes e os mais corajosos sucumbem”.
É por causa disso que pareceu acertado que vários psicólogos apontassem os efeitos desse reality show sobre os candidatos. Que Lucas, um dos candidatos negros do reality tenha dado sinal de uma saúde mental deteriorada não é anedótico. Não é anedótico que, após sofrer inúmeras agressões do outros participantes, Lucas tenha desistido do programa em 7 de fevereiro. Em “Terra Estranha”, o melhor livro já escrito sobre a psicologia do homem negro, vemos que nós, negros, além de tentarmos ser cidadãos plenos, precisamos exorcizar a loucura que o racismo planta em nossas cabeças. Estou grato que esse problema veio à tona agora.
Vários internautas, anônimos e intelectuais, foram às redes sociais manifestar sua preocupação quanto aos efeitos que as atitudes desses influenciadores estão tendo sobre a compreensão da questão racial pelo público. Tenho recebido até mensagens de brasileiros do exterior desejando que pessoas como Sílvio Almeida e outros intelectuais respeitados se pronunciassem e, sobretudo, se distanciassem, enquanto representantes do movimento negro, das posições tomadas por certos participantes negros do reality show.
A mais controversa até o momento é, sem dúvida, a rapper Karol Conká cujas falas contra nordestinos, visões preconceituosas sobre modos de ser de pessoas negras e até mesmo especulações sobre a higiene bucal de outro participante criaram uma forte rejeição. Me parece que tudo isso que estamos vendo é sintomático de algo muito mais profundo do que muitos querem encarar: o lugar que os influenciadores ocupam em nossa sociedade é sem precedentes na história do “star system”.
Nos anos 1970, Edgar Morin escreveu um livro seminal no qual analisava o lugar das “estrelas” na sociedade capitalista moderna. Para o pensador francês, eram ao mesmo tempo deuses e a imagem das nossas próprias projeções. Elas tiravam sua aura da televisão e, especialmente, do cinema. De Sinatra a Marilyn Monroe, de James Dean a Rock Hudson ou Grace Kelly, essa “gente como a gente” ganhava um status de divindade ao ocupar as telas e enchia nosso espaço doméstico de sonhos e esperança. Os escândalos em que se envolviam consistiam numa espécie de outro lado da moeda, o preço a pagar por se parecer tanto com os deuses. No século 21, as redes sociais substituíram o cinema na construção da fama.
O ineditismo desse novo fenômeno de agora é que o status do influencer do século 21 lhe confere poderes que nem mesmo Sinatra e Grace Kelly sonhariam em ter. Os famosos das redes sociais se transformaram em autoridades morais, científicas e políticas que opinam sobre qualquer assunto. A expertise não importa mais. Importa a fama que se compreende em termos de audiência, engajamento e captura da atenção do público. Vale o número de seguidores nas redes sociais.
A Rede Globo, que compreende o coração dos brasileiros melhor que qualquer sociólogo da USP, vem investindo nesses influenciadores numa clara redefinição de seus programas. Na verdade, qualquer um de nós poderia adivinhar quem serão os candidatos do BBB 22. Podemos especular sobre alguns nomes. O leitor pode fazer isso sozinho e acertará em 45% dos casos ou mais.
O que me parece sintomático também é que vários intelectuais pensem que a atuação de Karol Conká causará um “grande dano aos esforços do movimento negro nos últimos anos”. Certamente causará. Porém, esse dano é maior que aquele causado pela presença de Sérgio Camargo na direção da Fundação Palmares? Em um caso, as falas do influencer só engajam quem as pronuncia podendo provocar algumas perdas em termos de sua imagem. Mas as falas de Camargo têm consequências vinculantes e carregam a força do estado. Apostaria que a maioria dos brasileiros nem sabe quem é Sérgio Camargo ou tampouco a importância da função que exerce na administração pública. Mas esses são os tempos em que vivemos. Tempos de forte anomia em que, paradoxalmente, muita gente tem algo a dizer.
A Rede Globo sabe perfeitamente interpretar esses tempos de anomia, que se caracterizam por sua indefinição moral, a ausência de regras e a dificuldade de construirmos consensos. Nesse sentido, temos apenas opiniões competindo entre si nessa grande arena que são as redes sociais. É aqui que a televisão intervém e se coloca, outra vez, como mediadora das nossas experiências.
Chego a me perguntar se toda a experiência humana atual não se tornou um vasto reality show. No auge das polêmicas provocadas por Karol Conká, aconteciam, em paralelo, às eleições para a presidência da Câmara e do Senado, em Brasília. Um dia após a eleição de Arthur Lira para o comando da Câmara, entrei na minha conta do Twitter e me deparei com um vídeo que era aparentemente uma festa. Havia várias pessoas elegantes dançando, pessoas alegres, adivinhei que o ritmo tocado poderia ser sertanejo. Pensei imediatamente que as intrigas da Karol Conká haviam dado lugar a uma daquelas festas que só Big Brother sabe proporcionar. Pois, não.Tratava-se, na realidade, de uma reunião para comemorar a vitória do político. Reconheci a deputada Joice Hasselmann. Lá estava ela feliz outra vez e em sintonia com o governo Bolsonaro. Não era o BBB, mas era um reality show.
O fundamental aqui é captar qual a essência do produto que a televisão e as redes sociais estão vendendo. Elas vendem basicamente a falta de pudor combinado com um certo glamour, porque precisamos desejar aquilo que vemos. Mesmo que isso nos cause uma profundo dor, como aponta a socióloga Silvia Viana no livro “Rituais de Sofrimento”: precisamos desejar aquilo que nos vendem. Seja a política ou o BBB, a falta de pudor precisa sempre estar acompanhada de um certo glamour. Daí que os influencers sejam os candidatos ideais para sustentar o reality show.
Vejam, por exemplo, a forma como a questão racial é apresentada ao público. Tudo ali responde a um critério de consumo fácil e até mesmo de uma certa efemeridade. Nada precisa perdurar nas memórias. As opiniões sobre desconstrução das imagens raciais precisam ser diretas, enfáticas, brutais, às vezes. Mas, fundamentalmente, precisam ser efêmeras. Assim como as ofensas contra nordestinos, negros ou mulheres. Tudo deve ser suscetível a se perder com o tempo. Deve permanecer apenas a imagem do efêmero. Por isso, as opiniões de Silvio Almeida ou o brilho intelectual de Winnie Bueno que, certamente teria muito a dizer sobre “as imagens de controle”, não podem competir com o BBB.
Nada que possamos dizer agora poderá consertar os danos causados pelas falas polêmicas e violentas da Karol Conká porque não operamos no mesmo registro. O que escrevemos não passa pelo filtro e o controle da Rede Globo que, ao fim e ao cabo, é quem produz essas “imagens de controle” sobre a questão racial e seus representantes no debate público.
A representatividade negra e o “identitarismo” estavam melhor vistos antes do BBB21 ou ficaram piores no imaginário nacional depois dessas primeiras semanas? Do meu ponto de vista, predomina no Brasil percepções negativas tanto sobre representatividade quanto sobre “identitarismo”. Os responsáveis são principalmente os partidos políticos de esquerda e de direita. Paradoxalmente, eles não hesitam em usar eleitores negros como massa de manobra, contanto que esse debate não seja colocado na praça pública precisamente nesses termos. No final, não querem que as estruturas raciais de dominação sejam alteradas.
(*) Serge Katembera é doutorando em Sociologia pela UFPB e pesquisa a influência das Novas Tecnologias da Informação na democratização da África francófona. É co-autor de “Outsourced Information: identity and unpaid work in the age of digital journalism”.