Em entrevista ao Sindipetro Unificado de São Paulo, o economista Henrique Jäger, pesquisador do Ineep, ressalta que quase 99% do que sobrar das refinarias estará no eixo Rio-São Paulo, o que causará aumento de preços e desabastecimento das outras regiões
[Da imprensa do Sindipetro Unificado SP]
Há pouco mais de 10 anos, após a crise financeira de 2008, os Emirados Árabes Unidos decidiram mudar a estratégia de investimentos dos recursos provenientes do petróleo. Sexto maior produtor do mundo, com uma média de 3,9 milhões de barris extraídos por dia, o país deixou de aplicar seu patrimônio no setor imobiliário e títulos públicos para diversificar suas atividades, principalmente nas áreas de infraestrutura, mineração, óleo e gás e energias renováveis.
Essas fortunas são administradas por fundos soberanos, que se constituem como uma poupança pública na qual se destinam bônus, royalties e participações especiais da exploração e produção de óleo cru. Nos países árabes, principalmente, esses fundos são utilizados para buscar alternativas econômicas e perpetuar a sustentabilidade financeira dos seus respectivos estados.
Um dos principais fundos soberanos dos Emirados Árabes Unidos, chamado de Abu Dhai Mubadala, foi justamente quem ofereceu a melhor oferta para adquirir a Refinaria Landulpho Alves (RLAM) – a primeira de um total de oito que a atual gestão da Petrobrás pretende privatizar até o final de 2021. Fundada em 1950, antes mesmo da criação da Petrobrás, a refinaria se situa no município de São Francisco do Conde, na Bahia.
Atualmente, a venda da segunda maior refinaria do país, com capacidade de refinar 330 mil barris por dia, encontra-se em fase vinculante. Como o Abu Dhai Mubadala apresentou a melhor oferta, ganhou o direito de discutir com exclusividade os termos do contrato de compra com a Petrobrás.
Na contramão desses fundos soberanos, o plano do presidente da estatal, Roberto Castello Branco, é focalizar todas as atividades da companhia na região Sudeste, exclusivamente nos setores de exploração e produção.
Nesta entrevista, o economista e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) e ex-presidente da Petros, Henrique Jäger, aponta as consequências macro e microeconômicas que o país sofrerá, caso essas privatizações sejam concretizadas.
“A questão do abastecimento e da unidade nacional, que perpassa toda a história da Petrobrás até este momento, está sendo rompida com essa estratégia da companhia de privatizar 50% do seu parque de refino. Praticamente 99% do que sobrar das refinarias estará no eixo Rio-São Paulo, o que deixa uma lacuna do ponto de vista do abastecimento das outras regiões”, explica.
No caso da Refinaria Abreu e Lima (RNest), que opera desde 2014 na cidade de Ipojuca, em Pernambuco, sua privatização pode significar a perda da soberania sobre a importação de Gás Natural Liquefeito (GLP).
“A privatização da RNest também significa a privatização de 80% da capacidade de importação e tancagem de GLP por parte do Brasil. Isso é uma coisa seríssima, não é simples. O Brasil importa, atualmente, entre 25 e 30% de todo o GLP consumido nacionalmente – 80% dessa importação entra pelo porto de Suape e 20% pelo porto de Santos. A gente está falando de colocar no setor privado 80% da nossa capacidade de armazenamento de GLP importado”, aponta.
O economista também acredita que os potenciais compradores terão um poder ilimitado para definir os tipos de derivados que serão produzidos, assim como os preços, o que pode impactar o bolso e até mesmo o acesso aos combustíveis por grande parte da população que vive fora do eixo Rio-São Paulo.
“Como não terão mais estoques reguladores, o país ficará refém das estratégias das empresas que vieram a adquirir essas refinarias, se o processo de privatização for adiante”, avalia.
Confira abaixo a entrevista na íntegra com Henrique Jäger:
Qual a sua opinião em relação ao plano da atual direção da Petrobrás de privatizar oito refinarias, responsáveis por aproximadamente 50% da capacidade de refino instalada no país?
A Petrobrás, desde a sua origem, teve uma preocupação com a integração de todo o território nacional. A primeira grande fase de crescimento foi justamente a de construção das refinarias, que foram distribuídas geograficamente para abastecer todo o país. Por isso, elas tiveram um papel estratégico na integração de todas regiões ao processo de desenvolvimento, que coincide com a criação da Petrobrás na década de 1950. Isso permitiu que o Brasil deixasse de ser um país agrário-exportador para se tornar um país com uma indústria pujante, tendo a Petrobrás como carro-chefe.
Neste momento, o plano da atual gestão é privatizar metade do parque de refino, mais do que isso, privatizar todas as refinarias fora do eixo Rio-São Paulo, à exceção da Refinaria Potiguar Clara Camarão [RPCC]. Esta refinaria está localizada no Nordeste, mas está ligada à diretoria de exploração e produção e não de abastecimento, porque lá funciona como um centro de pesquisa para utilização do petróleo produzido em território nacional. Com isso, praticamente 99% do que sobrar das refinarias estará no eixo Rio-São Paulo, o que deixa uma lacuna do ponto de vista do abastecimento das outras regiões.
Isso porque nós não temos estoques reguladores, como nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, por exemplo. O consumo depende da produção do dia anterior, explicando de uma forma caricatural. Nós não temos estoques a não ser aqueles que estão nos postos e nos tanques das refinarias. Por isso, a questão do abastecimento e da unidade nacional, que perpassa toda a história da Petrobrás até este momento, está sendo rompida com essa estratégia da companhia de privatizar 50% do seu parque de refino.
Essa unidade garantiu, ao longo de toda a história nacional, o fornecimento da energia tão necessária ao desenvolvimento do país. É isso que nós estamos mexendo nesse momento, sem a definição de uma agência para regular esse processo. A ANP [Agência Nacional do Petróleo] já se manifestou dizendo que não tem condições. Sem a definição da criação de um órgão responsável pela gestão de um estoque regulador, a situação se torna dramática, com consequências seríssimas.
Caso sejam concretizadas, essas privatizações podem impactar o abastecimento interno de combustíveis?
Com certeza. Como não existe um estoque regulador, o país ficará refém das estratégias que serão adotadas pelos adquirentes dessas empresas, caso as privatizações sejam concretizadas. Em função do preço, cada agente pode diminuir, por exemplo, a produção de GLP [Gás Liquefeito de Petróleo] em detrimento da produção de QAV [querosene de aviação], por exemplo. Pode também, como a Refinaria Landulpho Alves [RLAM] está fazendo agora na Bahia, reprocessar diesel para produzir óleo combustível marítimo, que está muito valorizado no mercado internacional, e é por onde a Petrobrás tem aumentado sua rentabilidade no refino, por conta do baixo teor de enxofre do petróleo produzido no pré-sal. Essas movimentações são possíveis nas refinarias.
Por isso, podem surgir problemas no fornecimento de derivados do ponto de vista regional, porque já não existirá uma integração nacional com a privatização de parte das refinarias. Em função do preço, o dono da refinaria pode decidir se vai investir mais em um derivado ou não, ou mesmo deixar de produzir. Se ele tiver uma perna no segmento de importação, ou uma estratégia internacionalizada, ele pode decidir importar e utilizar pura e simplesmente a sua estrutura para tancagem, caso estiver lucrando mais com a importação do que com a produção interna.
A Raízen inaugurou um terminal no Porto de Itaqui, em São Luís, no Maranhão. De acordo com executivos da companhia, o projeto visa ampliar a importação de diesel e a distribuição de produtos para o Norte e Nordeste. Qual a sua avaliação sobre esse projeto?
A Raízen é uma das empresas que têm apresentado propostas para adquirir as refinarias. Ela é uma joint venture que envolve a Shell, que atua fortemente no Brasil. Provavelmente deve ser a segunda maior distribuidora de derivados do Brasil. Ela está vendo uma oportunidade, nessa privatização das refinarias, para aumentar seu escopo de atuação e, consequentemente, sua rentabilidade. Está se preparando para esse processo. Essa é uma consequência da ruptura da Petrobrás enquanto integradora nacional, atuando em todos os estados do Brasil. Essas empresas estão se preparando para adquirir esses negócios e terem grandes lucros às custas do sobrepreço que eles vão cobrar da população brasileira.
Não terá órgão regulador, armazenamento e estrutura alternativa de transporte de derivados. Essas empresas terão uma margem muito grande para definir seu preço, sem fazer com que isso aumente a concorrência. E elas estão se preparando justamente para isso. Ou seja, para controlar o mercado sem concorrência, cobrar um preço mais elevado e, com isso, aumentar sua rentabilidade.
As oito refinarias na lista de privatização são responsáveis por 39% da produção de GLP no país. Não existe nenhuma garantia que seus compradores continuarão produzindo GLP para abastecimento do mercado doméstico. Além disso, grande parte do gás importado entra pelo terminal de Suape, que provavelmente será privatizado junto com a Refinaria Abreu e Lima (RNest). Nesse sentido, qual o impacto de um possível desabastecimento com a privatização desses ativos?
A privatização da RNest também significa a privatização de 80% da capacidade de importação e tancagem de GLP por parte do Brasil. Isso é uma coisa seríssima, não é simples. O Brasil importa, atualmente, entre 25 e 30% de todo o GLP consumido nacionalmente – 80% dessa importação entra pelo porto de Suape e 20% pelo porto de Santos. A gente está falando de colocar no setor privado 80% da nossa capacidade de armazenamento de GLP importado. Olha o controle que essa empresa terá sobre o mercado, por conta desse processo. Isso vale também para os outros derivados. Não se constrói uma logística alternativa sem prazo longo e com grandes investimentos. Eles vão transferir um poder muito grande para o adquirente, que poderá definir preço e controlar o mercado regional. Com certeza, surgirão oito monopólios regionais privados.
Houve um crescimento do consumo de lenha nos último anos decorrentes da política de preços da Petrobrás?
O consumo de lenha cresce na década de 1990 até o início deste século, em 2001 e 2002. A partir de 2003, com a adoção de uma nova política de preços pela Petrobrás, o consumo de GLP começa a aumentar, principalmente a partir de 2005, em relação ao consumo de lenha. Nessa época, o consumo de GLP ultrapassa o de lenha. Entretanto, o congelamento chega ao fim em 2013 e os aumentos voltam a ocorrer, principalmente a partir de 2017, quando o preço do GLP chegou a subir 60% em um período que a inflação girou em torno de 3,5%. Isso fez com a utilização de lenha para alimentação voltasse a crescer. Essa é uma tendência que tende a aumentar com esse processo de privatização e de concentração em um único ator, justamente pelo forte aumento de preços.
Como não terão mais estoques reguladores, o país ficará refém das estratégias das empresas que vieram a adquirir essas refinarias, se o processo de privatização for adiante. Então, você está concentrando muito poder na mão dessas empresas. No caso do GLP, muito poder a quem vier adquirir a RNest.
Vou chamar atenção para uma questão que está colocada. Pode haver, sim, o aumento da produção de GLP pela Petrobrás advinda do gás natural, mas isso exigirá uma série de investimentos que, ao que tudo indica, ela não está disposta a fazer, porque teria que haver uma readequação de suas unidades de produção de gás natural. Também não há a indicação da construção de novas Unidades de Processamento de Gás Natural. Apenas uma está sendo construída atualmente, no Comperj [Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro], mas que não aumentará significativamente a capacidade da Petrobrás de produzir GLP a partir do gás natural. Neste cenário, nós vamos continuar por muito tempo reféns ainda da importação líquida de GLP. E, com a venda da RNest, reféns de um único agente que, com certeza, vai fazer dessa concentração uma vantagem econômica até que se tenha concorrência.
Você concorda com o discurso da atual gestão de que essas privatizações aumentarão a concorrência e, consequentemente, os preços dos derivados diminuirão?
A história da concorrência no Brasil mostra que ele não se reflete em redução dos preços, porque os atores chegam em acordos. Em 2003, existiam 5 mil unidades de revenda de GLP no Brasil, número que cresceu para 73 mil em 2020. Entretanto, o que mais cresceu dentro da estrutura de preço do GLP nos últimos anos não foi a parcela da Petrobrás, nem das distribuidoras, nem do imposto cobrado pelos estados. O que mais cresceu foi justamente a parcela das revendedoras. Ou seja, houve um aumento da concorrência da revenda em quase 2000%, e mesmo assim eles conseguiram aumentar sua parcela de lucro no preço do GLP. Isso prova que a concorrência não resulta em uma redução de preços, pelo contrário, a concorrência leva a um aumento do preço. Esse discurso de que a concorrência leva à diminuição dos preços não é verdadeira.
E também é falso o discurso de que as refinarias vão competir entre si porque elas foram pensadas para satisfazer a necessidade de abastecimento do território nacional e estão localizadas de modo a controlar determinados mercados regionais. Por isso, não haverá concorrência. Um produto de São Paulo não vai chegar no Nordeste com um preço para concorrer com a RNest. Então, quem vai determinar o preço no Nordeste vai ser a RNest e a RLAM. Pior ainda, os compradores dessas refinarias podem exportar a produção, o que acarretará um grande problema para o país.
Recentemente, a PUC [Pontifícia Universidade Católica] divulgou um estudo mostrando que, das oito refinarias, duas correm algum risco de virarem monopólios e em seis o risco disso acontecer é altíssimo. Serão monopólios regionais, que tendem a definir sua estratégia com o objetivo de maximização do lucro e não terão mais o abastecimento nacional como tarefa. Poderá sobrar um combustível e faltar outro, o que vai implicar a necessidade de importação e logística, operação nada simples, porque eles estão privatizando não apenas o refino, como toda a logística envolvida nas refinarias. E não é simples construir algo alternativo para se contrapor a essa estrutura. Por isso, o que está se criando são monopólios regionais que irão desenvolver suas estratégias de acordo com a maximização dos seus lucros.
As outras refinarias, que continuarão sob controle estatal neste momento, correm algum risco de serem privatizadas a médio e longo prazo?
A Petrobrás já anunciou seu desejo de no futuro ser uma empresa única e exclusivamente produtora de petróleo na região do pré-sal. Portanto, não está descartada a privatização das refinarias localizadas na região Sudeste, no médio e longo prazo. Nenhuma refinaria de São Paulo entrou no processo de privatização porque elas são muito integradas, e a privatização de alguma delas demandaria grandes obras para interromper o compartilhamento dos oleodutos e gasodutos que fazem com que o petróleo e mesmo os derivados sejam distribuídos de forma interligada. Entretanto, não está descartada no futuro a privatização desta segunda perna do refino, que escapou da privatização neste momento.
O refino tem um papel estratégico. As estatísticas internacionais de precificação demonstram uma valorização maior das empresas de petróleo que são integradas em relação às empresas de petróleo que trabalham apenas com exploração e produção. Isso porque elas têm um risco menor de preço, já que os derivados têm uma volatilidade muito mais baixa do que o petróleo bruto, por exemplo. Além disso, o refino agrega valor e é a porta de entrada para o futuro da indústria.
Qual é o futuro dessa indústria?
A tendência do futuro é a de que o petróleo deixe de ser a fonte principal da matriz energética do transporte, com o surgimento dos carros e de novas tecnologias, e passe a ser mais utilizado na indústria petroquímica, setor que a Petrobrás também está saindo. Em 2040, os combustíveis limpos devem representar algo em torno de 25% da matriz energética. Atualmente, o petróleo é matéria-prima de quatro mil produtos feitos a partir da nafta produzida nas unidades de refino. Quando você abre mão desse refino, está abrindo mão do futuro da indústria. Com isso, vamos voltar a ser fornecedores de matéria-prima, como fomos por séculos do café.
Do ponto de vista microeconômico, essa estratégia de se concentrar na produção única e exclusivamente de petróleo vai implicar em um aumento do risco da empresa e, consequentemente, na redução do seu valor e da sua rentabilidade. Do ponto de vista macroeconômico, esse movimento é um desastre, porque rompe a unidade nacional, sem garantia de fornecimento de derivados de petróleo, que são tão importantes, seja para fazer a comida, seja para fazer o transporte público ou de mercadorias.