Em entrevista exclusiva ao Sindipetro Unificado, o jornalista Juca Kfouri reflete sobre a falta de politização no esporte, rechaça a volta do futebol e clama por uma frente antifascista que chegue “até a doer” O futebol e a política sempre se misturaram, mas não possuem uma simples relação de causa e efeito. Em um trecho do seu sexto e último livro, intitulado “Confesso que perdi” (2017), Juca Kfouri sintetiza seu pensamento sobre o assunto: “Futebol e política, política e futebol se misturam como água e sabão, e seria ainda melhor se um e outro fossem mais limpos do que são. Nem por isso o herói do tricampeonato em 1970 é o general Garrastazu Médici; os heróis são Pelé, Tostão e companhia bela”.
Para o jornalista, que completou 70 anos em março, a formação dos ídolos não está relacionada à ideologia. À esquerda, cita Sócrates Brasileiro. À direita, aponta Ayrton Senna. Entretanto, faz uma ressalva resgatando um exemplo exterior ao futebol. “O Chico Buarque de Hollanda era um menino que todos os pais e mães queriam que suas filhas se casassem. Foi apenas ele começar a manifestar suas opiniões políticas para que dividisse [seu público]”, recorda.Atualmente, analisa o esporte como um cenário propenso à despolitização, devido ao individualismo e competitividade a todo custo. “Atualmente, os jogadores são muito voltados para si mesmos, para os seus próprios umbigos, para competirem, para serem campeões, para baterem recordes. E se preocupam muito pouco com o entorno. Infelizmente, a vida do atleta, em regra, é alienada politicamente, muito centrada nos seus próprios objetivos”, explica.
Diante disso, Juca mostra sua coerência ao aplaudir manifestações de ambos os aspectos políticos. Assim como Afonsinho, Sócrates, Reinaldo e Wladimir são exceções à esquerda, Felipe Melo também se mostra como um intruso à direita em meio à despolitização dos atletas. “Aplaudo que os esportistas se posicionem, deploro que seja a favor do Bolsonaro, porque é tudo contrário ao que eu penso. Mas vamos discutir, vamos colocar para o debate público”, opina.Justamente por isso, Kfouri condenou as recentes declarações do comentarista da Rede Globo, Caio Ribeiro, contrárias ao posicionamento de Raí. O atual diretor de futebol do São Paulo Futebol Clube, e irmão de Sócrates, criticou abertamente o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pediu a sua renúncia. “Meus problemas com a declaração do Caio são dois. Um, ele quis censurar a opinião de um esportista. Dois, ele não foi transparente ao omitir que o seu pai [Dorival Decoussau] é da oposição no São Paulo Futebol Clube, e o Raí é diretor [de futebol] da atual administração”, pontua.
“Atualmente, os jogadores são muito voltados para si mesmos, para os seus próprios umbigos”, afirma Kfouri (Foto: Brasil 247)Para o jornalista, que foi motorista de Joaquim Câmara Ferreira, número dois da Ação Libertadora Nacional (ALN), tendo Carlos Marighella como líder, a gravidade da situação política brasileira gera muita preocupação. Apesar da dificuldade em construir respostas concretas a longo prazo, Kfouri defende a necessidade de formação de uma frente antifascista “ampla, mas tão ampla… até doer”.Confira a entrevista completa abaixo:
Juca, em 2013 o jornalista espanhol Quique Peinado publicou o livro “Futebol à esquerda”, que reúne histórias de jogadores engajados politicamente ao redor do mundo. Por que é tão difícil despontar jogadores com um pensamento mais à esquerda?
Juca Kfouri: Atualmente, os jogadores são muito voltados para si mesmos, para os seus próprios umbigos, para competirem, para serem campeões, para baterem recordes. E se preocupam muito pouco com o entorno. Infelizmente, a vida do atleta, em regra, é alienada politicamente, muito centrada nos seus próprios objetivos. Daí você tem as exceções que acabam despontando. Aqui no Brasil, o Afonsinho, o Reinaldo, o Sócrates, o Casagrande, o Wladimir, o Paulo André… E não tem muito mais do que isso.Temos também o Muhammad Ali, os dois norte-americanos [Tommie Smith e John Carlos] que fizeram o gesto do poder negro no pódio das Olimpíadas do México, em 1968, o quaterback [Colin Kaepernick] que se ferrou nos Estados Unidos porque não ficava em posição de sentido na hora do hino, ou a Megan Rapinoe batalhando pela igualdade de gênero no futebol. Mas são exceções. Como o Felipe Melo é uma exceção.
Você considera o Felipe Melo também uma exceção?
É, ele é. Agora, a tendência, infelizmente, é [o jogador] votar mais à direita. Pelo menos aqueles que são mais conhecidos. Por quê? Porque eles ascendem socialmente e passam a ter uma preocupação exacerbada com a segurança pessoal, da família, do carro blindado, do condomínio. E aí são presas fáceis desse tipo de discurso neurótico pela segurança típico dos bolsonaristas.
Você considera que, para além disso, existe uma interferência da própria formação do jogador? Não da formação educacional propriamente dita, mas da formação dos clubes em relação aos valores do atleta?
Evidentemente, mas veja que isso transcende o jogador de futebol. Você está dentro de um sindicato, você sabe. Veja qual é a força que tem hoje o movimento sindical no Brasil. Por quê? Porque nós ainda não tivemos uma estrutura educacional que forme cidadãos, e isso, evidentemente, acaba inibindo a reivindicação, a consciência dos direitos. Tudo isso está ligado.
Não é por outra razão que as elites brasileiras fazem questão de manter o nosso sistema educacional de tão baixo nível como ele é. Porque gente mais educada bota em risco os privilégios dessa gente. E você viu a reação ao simples fato das cotas, do Enem, da possibilidade de a filha da empregada competir com a filha do patrão na faculdade de medicina. Vimos o mal-estar que isso causou na casa grande. Para a casa grande, a senzala terá sempre que ser a senzala.
Juca, pensando no processo de formação dos ídolos, você acha que ele está relacionado somente ao nível do futebol? É óbvio que o Pelé foi o melhor do mundo em campo, mas o seu diálogo com o regime vigente pode ter contribuído para a sua figura ser alçada como a de um ídolo? Se ele fosse de esquerda, por exemplo, teria a mesma projeção?
Ué, sim. Sem dúvida, não vejo nenhuma incompatibilidade. Você tem o Muhammad Ali, que foi ídolo no país como os Estados Unidos, ao mesmo tempo que eles têm uma porção de ídolos de direita. Aqui no Brasil da mesma forma. O Ayrton Senna é um ídolo brasileiro de direita. O Sócrates é um ídolo brasileiro de esquerda, e que surge no período de ditadura. Agora veja como as coisas acontecem… O Chico Buarque de Hollanda era um menino que todos os pais e mães queriam que suas filhas se casassem. Foi apenas ele começar a manifestar suas opiniões políticas para que dividisse [seu público]. Daí tanta gente dizer que esporte e política não podem se misturar e essa baboseira toda que você está cansado de ouvir.
Qual a sua opinião sobre esse episódio envolvendo o Raí e o Caio Ribeiro?
Minha opinião é a de que o Caio quis censurar a possibilidade de um esportista falar de política. Meus problemas com a declaração do Caio são dois. Um, ele quis censurar a opinião de um esportista. Dois, ele não foi transparente ao omitir que o seu pai [Dorival Decoussau] é da oposição no São Paulo Futebol Clube, e o Raí é diretor [de futebol] da atual administração.Se você quiser acrescentar um terceiro ponto, ele também omitiu no seu bolsonarismo que o pai foi condenado a quatro anos de cadeia por fraudar o INAMPS [atual INSS], quando era superintendente do Hospital Matarazzo. Foram 100 milhões de cruzeiros desviados na época. O que dá a medida do que são os bolsonaristas. Só isso.Agora eu fico muito tranquilo de ter manifestado isso publicamente porque eu defendi o Felipe Melo quando ele se manifestou a favor do Bolsonaro. Aplaudo que os esportistas se posicionem, deploro que seja a favor do Bolsonaro, porque é tudo contrário ao que eu penso. Mas vamos discutir, vamos colocar para o debate público. Agora, o que o Caio quis fazer? Quis evitar a discussão.
Muitos clubes estão pedindo a volta do futebol. Qual a sua opinião sobre isso?
Não tem o menor sentido. Não chegamos nem no pico da pandemia. Não tem a menor condição da volta do futebol agora. Se voltar, vai ser para o segundo semestre e olhe lá. Não tem o menor sentido pensar nisso neste momento. É simplesmente um desrespeito à vida.E depois é uma discussão que acaba sendo ociosa, porque ainda que a CBF [Confederação Brasileira de Futebol] e as federações decidam voltar, isso depende do Estado… O prefeito de Belo Horizonte já disse: ‘aqui em Belo Horizonte não vai ter jogo’. Ponto. Aqui em São Paulo também não vai ter. O governador vai dizer a mesma coisa: ‘no estado de São Paulo não tem jogo’. E aí?! Vai levar o campeonato para onde, Brasília? É uma discussão absolutamente açodada. Não tem a menor opção de estabelecer prazos neste momento, com a pandemia matando essa quantidade de pessoas.
É uma falta de sensibilidade e empatia com o restante da própria categoria que não está no mainstream, mas nas filas das agências da Caixa Econômica Federal para conseguir o auxílio emergencial…
O cartola no Brasil é o Madero, é o Justus, é o Velho da Havan, é a mesma mentalidade. São esses caras que despontaram para a insensibilidade nacional.
Ao mesmo tempo que temos poucos jogadores de esquerda, temos uma quantidade considerável de jornalistas esportivos dentro desse espectro político. Entretanto, poucos estão na mídia independente ou popular. A esquerda negligencia o futebol?
A esquerda tem, historicamente, uma posição preconceituosa com o esporte e com o futebol, achando que é o ópio do povo e essas bobagens. Mas eu diria que, fundamentalmente, a imprensa de esquerda não tem condição material para pagar jornalistas de esquerda que cuidem de esporte. Então, isso acaba influenciando que você conheça e se identifique com jornalistas da grande imprensa, porque são os veículos que têm condições de pagar a qualidade desses profissionais.
Juca, não tem como deixar de perguntar sobre a conjuntura. Qual a sua opinião sobre a situação atual do governo de Jair Bolsonaro?
Antes de ontem me perguntaram como eu vislumbro [as eleições presidenciais de] 2022. E eu respondi: ‘eu não sei como vai ser sexta-feira’. Que dirá 2022. Eu não tenho dúvida nenhuma que o ideal para o país, hoje, seria a queda do Bolsonaro. Tenho todas as dúvidas se um processo de impeachment redundaria na sua saída ou o fortaleceria, porque o Congresso poderia não aprovar.Ao mesmo tempo, me pergunto se o [vice-presidente da República, general Hamilton] Mourão não será pior do que o Bolsonaro. E daí você coloca lá um general, com a gravidade do que isso significa. Um cara mais sofisticado, mas tão reacionário quanto o Bolsonaro, que tem o mesmo [torturador Carlos Alberto Brilhante] Ustra como ídolo.Aí eu penso: ‘ah, o ideal então é declarar que a eleição de 2018 foi fraudulenta e termos novas eleições’. No meio da pandemia? Isso não vai acontecer. Então, eu estou muito preocupado com o retrocesso que nós estamos vivendo. E muito preocupado em que se forme uma frente antifascista. Meu lema do momento é esse: ‘por uma frente ampla, mas tão ampla… até doer’.
Sindipetro SP, por Guilherme Weimann (Foto: Brasil 247)