“O coronavírus foi uma pequena pólvora detonadora dessa crise do petróleo”, afirma ex-diretor da Petrobrás

 

Desde o início do ano, com a expansão da covid-19, o mundo vive uma retração econômica e, consequentemente, diminuição da demanda internacional por petróleo. Em decorrência disso, no dia 9 de março, os mercados entraram em colapso com a chamada “Guerra do Petróleo”. Somente nesta data, o preço do barril caiu de U$S 45 para U$S 31,52 em poucos segundos de funcionamento das bolsas de valores.

Para o diretor do Instituto de Energia e Ambiência da Universidade de São Paulo (USP), Ildo Sauer, a explicação dessa conjuntura não pode ser apenas colocada na conta da pandemia. De acordo com o pesquisador e ex-diretor de Gás e Energia da Petrobrás, “o coronavírus foi um mero estopim, uma pólvora detonadora dessa crise”.

Segundo o pesquisador, o que está no centro desse movimento é a consolidação da hegemonia da Arábia Saudita e da Rússia na geopolítica do petróleo. Juntos com os outros países que integram a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), são responsáveis por cerca de 40% da produção mundial, o que representa 90% das exportações de petróleo.

“A Arábia Saudita diz que pode impor qualquer preço, já que tem condições de produzir petróleo barato e não quer assumir sozinha o ônus de produzir menos, enquanto produtores menos eficientes exportam em grandes quantidades”, explica Sauer.

Por produzirem petróleo a custo baixo e possuírem grandes reservas financeiras, Arábia Saudita e Rússia aumentaram o ritmo de produção e, consequentemente, diminuíram drasticamente o preço internacional do barril. Com isso, deram um “choque no mercado”, acrescenta Sauer, especialmente nos produtores do shale oil norte-americanos, com elevado custo de produção.

Nesse cenário, o pesquisador afirma ainda que as últimas gestões da Petrobrás estão caminhando no sentido oposto aos interesses de sua maior acionista: o povo brasileiro. Recordando seu artigo “Pré-sal e Petrobrás além dos discursos e mitos: disputas, riscos e desafios”, critica o modelo de concessão e de partilha. Na sua opinião, a única opção é a contratação direta da Petrobrás.

Os resultados dessa política, para Sauer, devem ser investidos em áreas com carências muito anteriores à crise do coronavírus: “saúde pública, educação pública, infraestrutura, proteção ambiental, ciência e tecnologia”.

Confira abaixo a entrevista concedida ao jornalista Guilherme Weimann, para o Sindipetro Unificado de São Paulo: 

O preço internacional do barril do petróleo sofreu uma queda brusca e muitos especialistas apontam o coronavírus como fator determinante. Qual a sua opinião sobre esse cenário?

Eu acho que são duas situações que “se reforçam mutuamente”. De um lado, obviamente, a crise econômica decorrente da pandemia é um fator extremamente relevante para o contexto da demanda do petróleo. Redução na atividade econômica, na circulação de pessoas e nas mercadorias determinam, obviamente, uma redução na demanda. Esse é primeiro fator, inquestionável, extremamente relevante.

Mas, o mais relevante, sem dúvida nenhuma, é o processo geopolítico de determinação do preço do petróleo para o qual tem papel decisivo, ainda, a OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo]. E, de uma certa forma, não diria que oportunisticamente, mas que esta é uma coincidência que serve para reforçar a hegemonia ainda relevante da OPEP na formação de determinação do preço do petróleo. Especialmente, está sendo reafirmado aquilo que já está enunciado e anunciado há algum tempo.

A OPEP mais a Rússia responde por mais de 40% da produção mundial de petróleo que é exportado. Os demais 60%, aproximadamente, são produzidos localmente, inclusive pelo maior produtor, até agora pelo menos, que são os Estados Unidos. Em função da produção do shale oil, [os EUA] tornaram-se os principais produtores mundiais, mas ainda continuam importadores. Fora da OPEP e da Rússia, que em 2016 e 2017 fizeram um acordo de cooperação, colocam-se como relevantes México, Canadá e Brasil. A produção da Rússia e a OPEP representa cerca de 40% do petróleo consumido no mundo antes da crise, porém o valor chega a cerca de 90% do petróleo que circula, sem os quais o mundo não consegue atender sua demanda por combustíveis líquidos.

Mas vamos fazer uma conta. O mundo consumia, antes da crise [do coronavírus], 100 milhões de barris por dia, o que representa aproximadamente 37 bilhões de barris por ano, que tem gerado um excedente da ordem de U$S 50 a U$S 60 por barril. Na Arábia Saudita, o custo de produção, sem impostos e taxas, é U$S 2 e, no Brasil, U$S 8 por barril. Já na Rússia existe um preço intermediário entre esses dois países. Neste contexto, o excedente econômico mundial apropriado pelos países, que vira lucro para as empresas e impostos para financiar os estados nacionais, situa-se na ordem de U$S 2 trilhões a U$S 2,5 trilhões por ano, num PIB mundial de cerca de U$S 80 trilhões e um excedente, um superávit, de menos de 10%, ou seja, na ordem de U$S 6 a U$S 8 trilhões por ano. Esse é o quadro.

Qual o papel específico da Arábia Saudita nesse contexto?

A Arábia Saudita é a líder, porque é a maior produtora mundial da OPEP. A OPEP foi fundada por iniciativa da Venezuela e da Arábia Saudita da década de 1960, e teve dificuldade de impor seu poderio nos choques de 1973 e 1979. Mas em 2014 e 2015, o então ministro da Arábia Saudita dizia que, a partir daquele momento, seu país não seria mais o carregador do piano sozinho. A Arábia Saudita passaria a compartilhar o ônus, ou seja, estruturar cotas de produção com países membros ou não da OPEP. Foi chamada à conferência a Rússia, o Canadá, o México, e o Brasil, que nem sequer chegou a responder naquela ocasião, já no governo Temer.

Com isso, quando a Arábia Saudita diz que pode impor qualquer preço, já que ela tem condições de produzir petróleo barato e não quer assumir sozinha o ônus de produzir menos, enquanto produtores menos eficientes exportem em grandes quantidades. O resultado dessa discussão foi que a Rússia se juntou à iniciativa e criou, em 2017, a OPEP+. Esse “+” significa “outros”, em especial, Rússia e México. Brasil e Canadá não participaram.

Já nesta época, para demonstrar sua força, a Arábia Saudita impôs uma diminuição nos preços, que chegou a U$S 30. O que deixou a mensagem de afirmação do poder hegemônico da OPEP. Isso gerou uma enorme crise na produção do shale oil americano e nos biocombustíveis. Além disso, esse movimento teve um efeito devastador para o Irã, que, naquela ocasião, estava voltando a querer exportar. A flutuação naquele momento ocorreu por uma decisão política, geopolítica da Arábia Saudita, como agora novamente.

A Arábia Saudita está dizendo que não vai ficar com o ônus apenas para ela. E a Rússia responde que poderia resistir por até 10 anos com os preços baixos. Então, são países que acumularam reservas financeiras enormes e podem manter a guerra.

Quais são os efeitos reais dessa queda no preço do petróleo no cenário geopolítico?

O impacto foi devastador, está sendo. Uma grande empresa de shale oil dos Estados Unidos já anunciou a falência, outras estão reduzindo drasticamente suas operações. O que significa que a reunião entre o príncipe herdeiro do reino da Arábia Saudita com o Trump foi um grito de socorro. E por quê?

A indústria norte-americana de shale oil, criada nos últimos 10 anos, tem capacidade de produzir 10 milhões de barris de petróleo, ou seja, quatro vezes a capacidade da Petrobrás. E ela está quebrando. A queda do preço tem um efeito devastador nessa cadeia produtiva que não vai voltar. Não é como apagar a lâmpada e ligar novamente. Depois que demitem e quebram as empresas, não tem como retomar instantaneamente.

Isso são ondas de choques que estão ocorrendo a cada cinco anos. A primeira foi em 2015, a segunda é essa de agora. E esse movimento parece seguir a estratégia de reforçar a hegemonia da OPEP e de sua liderança principal, a Arábia Saudita. Seja em cooperação, seja em disputa com a Rússia.

O que está acontecendo então é uma queda de braço para mostrar quem domina o mercado?

Nós já aprendemos há muito tempo que o sistema capitalista não funciona em condições de concorrência pura e perfeita, como pareciam anunciar os neoclássicos e depois os liberais. O que impera é a cooperação ou a disputa baseada na teoria dos jogos, cooperativos ou não cooperativos. Então, agora, havendo cooperação entre Rússia e Arábia Saudita, ou havendo uma disputa, estão sofrendo para suportar essa queda temporária, mas ao mesmo tempo também estão sendo premiados porque mostra que detêm o poder de mando sobre esta questão no mundo.

Juntos os dois países estão perdendo cerca de U$S 100 milhões por dia ou aproximadamente U$S 3 bilhões por ano. Mas eles têm reserva e estão passando uma onda de choque aos países marginais. Eles estão mandando uma mensagem ao shale oil americano, mas também ao Brasil, e isso é importante a gente pontuar.

Qual a mensagem que eles estão passando ao Brasil neste momento?

Os contratos de partilha outorgados pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, do PT [Partido dos Trabalhadores], mantidos por Temer, e agora por Bolsonaro, na tentativa do [ministro da Economia Paulo] Guedes de reforçar e aprofundar a liberalização, não são de interesse nacional. Muito menos o modelo de concessão. A única solução estratégica geopolítica para o Brasil é contratar diretamente a Petrobrás para num regime de serviços, como permite a lei, produzir o volume de petróleo que o país venha a necessitar. E exportar junto com a Rússia, México e Canadá, formando a OPEP+ reforçada, para gerar excedente necessário para o Tesouro Nacional e para investir nas necessidades nacionais.

E essas necessidades já existiam antes do coronavírus, que são saúde pública, educação pública, infraestrutura, proteção ambiental, ciência e tecnologia. De maneira que o aprendizado que podemos tomar dessa crise, assim como ocorreu em Yom Kippur [referência à guerra do petróleo, de 1973], é que o coronavírus foi um mero estopim, uma pólvora detonadora dessa crise.

Estes episódios são meras espoletas, detonadores, eles não são as pólvoras em si. O poder de explosão resulta da condição geopolítica hegemônica dos países da OPEP, que são treze países, mais Rússia, mais Canadá, mais México, mais Brasil, como potências determinantes na questão do petróleo. Infelizmente, o Brasil não tem política e nem estrutura estratégica à altura dos seus interesses nacionais.

As refinarias da Petrobrás já estavam sendo subutilizadas e oito delas já haviam sido colocadas no “plano de desinvestimento” da companhia. Agora, elas reduzirão suas cargas pela metade, com a justificativa de queda na demanda por derivados. Qual a sua avaliação sobre isso?

Primeiro, não podemos ignorar que o maior excedente econômico, o maior lucro, a maior renda vem da produção do petróleo. Agora não podemos negligenciar, por razões econômicas e estratégicas para o país, a indústria do refino e a logística. São setores estratégicos e econômicos muito importantes. Não para produzir lucro e excedente, porque o lucro das refinarias é o lucro médio pautado pela concorrência internacional do refino. Sua indústria é convencional, tem um lucro maior quando tem uma demanda crescente, e tem um lucro menor quando tem uma menor procura.

No Brasil, em 2014, ainda no governo de Dilma Rousseff, houve uma política desastrosa na qual a Petrobrás implementou de exportação de óleo cru e importação de derivados, chegando a uma ociosidade de 75% das nossas refinarias, espaço tomado pelos especuladores do mercado internacional de derivados. Isso foi criminoso contra o interesse econômico e estratégico brasileiro. Essa é uma consideração importante.

Há uma perda econômica nisso porque a Petrobrás deixa de cumprir o seu papel, deixa de gerar dividendos e benefícios econômicos para o país. E deixa também de atender com segurança a demanda brasileira em benefício de grandes companhias que estão comprando redes de postos no Brasil. Essas companhias, como a Trafigura, estão comprando postos no Brasil para venderem derivados importados em detrimento da capacidade de refino no Brasil.

Há seis anos esse movimento ocorre de forma criminosa. Essa política vem se mantendo desde então. A Petrobrás vem se mantendo nessa postura omissa. Não sei o quanto isso significa de estratégia do Ministério ou se é somente da Petrobrás. Mas essa conivência é desastrosa para o país.

O segundo ponto é que a exportação de petróleo só deve ser feita pelo Brasil com preços compensadores, para gerar excedente econômico necessário para um plano nacional de desenvolvimento econômico e social, para investir na saúde e educação pública.

Qual a sua opinião sobre a política de preços adotada pela Petrobrás nos últimos anos?

Nós devemos, sim, cobrar no mercado interno preços próximos dos internacionais, porque o petróleo pertence ao povo brasileiro, inclusive àqueles que andam a pé, que não têm carro. Então, o petróleo é do povo brasileiro e os derivados devem ser produzidos não para beneficiar os acionistas da Petrobrás, nem para os demais atores do processo. E, sim, para gerar renda econômica para o país, para o tesouro, e para investir nessas áreas estratégicas. É por isso que eu defendo o contrato de serviços da Petrobrás que leve em consideração o custo da produção, mais o excedente que pode chegar a 100%, para conseguir pagar regiamente os trabalhadores, e manter a atualidade tecnológica.

Mas, ao contrário disso, Brasil está acelerando a exportação a qualquer preço, o que é um crime contra a economia popular. O país deveria reduzir drasticamente a produção agora, não para proteger os acionistas, mas acima de tudo a riqueza pública do Brasil que está nos campos de petróleo, que pertencem ao povo brasileiro. Essa riqueza pertence ao povo e não à Shell, a Exxon ou a Total. Essa é a política que vai contra os interesses nacionais e está sendo aprofundada com esse governo que é subserviente ao capital privado e ao Trump.

No acumulado do ano, a gasolina caiu 43% nas refinarias, mas apenas 1,58% nas bombas; o diesel teve queda de 30%, mas apenas 5,1% nos postos; o gás de cozinha diminuiu 21%, mas subiu 0,5% nas distribuidoras. Por que essas reduções não se refletiram aos consumidores finais?

Isso demonstra o desastre do atual governo. O câmbio explodiu, fazendo com que em reais o preço internacional de referência continuasse elevado aqui dentro. Mas o meu debate é que nós podemos praticar preços próximos do valor, sem negligenciar a hipótese de preços melhores para beneficiar setores estratégicos, desde que essa renda vá para pagar a conta social. Ou seja, para melhorar a saúde e educação. Não para o que fez a Petrobrás, ou seja, facilitar o lucro dos acionistas privados, das petroleiras internacionais e das operadoras e distribuidoras.

Hoje, existem muitos mercados paralelos de petróleo, os chamados páreas internacionais. Eles vêm vender derivados com o preço do mercado internacional aqui no Brasil. Esse é um quadro muito complexo que emergiu e a minha defesa dos preços para próximos dos internacionais, com estabilidade, é para gerar dinheiro para resgatar a dívida social.

O segundo ponto é que o governo tem sido omisso e incapaz de fazer a logística da distribuição. Com a saída da Petrobrás, o mercado está monopolizado por grupos privados, que estão operando esse oligopólio em favor deles próprios. Quando o preço cai eles demoram para repassar ao consumidor, quando o preço aumenta eles valorizam todos os estoques existentes vindos da Petrobrás, mesmo tendo sido comprados por um valor mais baixo. Com isso, eles conquistam um lucro enorme. Mas isso demonstra um fracasso brutal do governo e da Agência Nacional do Petróleo [ANP], mostrando que a política de preços é absolutamente equivocada.

Você acredita que esse cenário foi agravado com a privatização da BR Distribuidora?

Sim, deveria ser instrumento de investigação essa entrega da BR Distribuidora. Como o governo vende o controle acionário de uma empresa de interesse estratégico como era a BR Distribuidora, que detinha mais de um terço do mercado brasileiro e, portanto, era instrumento de comportamento menos agressivo contra o interesse público? Isso demonstra a subserviência dos últimos governos ao capital privado.

O capital quer entrar em todos os setores, inclusive nas refinarias, mas não quer fazer novas refinarias. Eles querem adquirir por preços aviltados as refinarias e participar da logística. Esse quadro é grave, tem piorado e tende piorar ainda mais agora.

A solução para isso passa, obviamente, pela mobilização da população para transformar isso tudo. Não pode ser apenas setorial. Saúde, educação, infraestrutura, energia elétrica têm sido transformadas em detrimento dos interesses da população brasileira.

Nas últimas semanas, a Petrobrás anunciou dois documentos que ela denominou como “medidas de resiliência”, que incluem cortes de direitos trabalhistas, diminuição de investimentos e redução da produção em 200 mil barris diários. Qual a sua avaliação sobre essas medidas?

Reduzir a produção para não vender por esses preços aviltados me parece que não estão equivocados. Embora as razões pelas quais eles estão tomando essa decisão são sejam as mesmas pelas quais eu as faria. Mas, de fato, não há por que jogar petróleo no mercado agora. Também deveriam cobrar das demais petroleiras que estão operando aqui a mesma coisa. Não dá para vender o petróleo brasileiro, que pertence ao povo, a esse preço aviltado.

Quanto aos salários, o maior patrimônio da Petrobrás que, inclusive, gerou a grandeza dela, que descobriu o pré-sal, que construiu isso tudo, foi o conjunto dos seus trabalhadores. Desde os técnicos operacionais, das unidades de produção, aos cientistas e aos gestores. De maneira que é uma punição injusta e inaceitável. E por um outro motivo também, porque no momento que você está com queda econômica do país a solução é manter o poder aquisitivo de todos os trabalhadores, incluindo os da Petrobrás. Essa é uma medida completamente equivocada, que visa apenas sinalizar aos acionistas, que só veem o curto prazo. Uma ação subserviente da direção contra os interesses estratégicos da Petrobrás.

[Via Sindipetro Unificado-SP  | Foto: Guilherme Santos/Sul21]