Exemplo de atropelo da lei em benefício de interesses privados com danos graves ao conjunto da sociedade, a privatização sem licitação das refinarias da Petrobras em Pernambuco, na Bahia, no Paraná e no Rio Grande do Sul, anunciada no mês passado, é ilegal e imoral, ocorre a preço vil e está encoberta por um véu de segredo, acusam os autores das ações populares que pedem à Justiça Federal a suspensão imediata da venda. A empresa anunciou também as desestatizações das suas refinarias localizadas em Minas Gerais, no Ceará e no Amazonas e da unidade de industrialização de xisto no Paraná.
Nas ações ajuizadas na quinta-feira 11 no Rio de Janeiro, o técnico em informática Eduardo Henrique Soares da Costa, 49 anos, o engenheiro Igor Mendes Ursine Krettli, 36 anos, ambos funcionários do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Miguez da Petrobras (Cenpes), a técnica de administração e controle do escritório central da Petrobras Natalia Russo Lopes, 33 anos, todos eles dirigentes do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro, e o técnico em eletrotécnica e integrante da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes da Refinaria Duque de Caxias Marcello Bernardo Xavier Reis Sá, 35 anos, acusam o presidente da empresa, Roberto Castello Branco, de ter autorizado “ato ilícito e lesivo ao patrimônio público” e incorrido em “improbidade administrativa”. Prevista no artigo 5º da Constituição, a ação popular visa anular atos lesivos ao patrimônio público e seu maior beneficiário é a população em geral.
A estatal montou um esquema para burlar a lei em duas etapas, acusam os advogados Raquel de Oliveira Sousa, Carlos Eduardo Reis Cleto e Bruno José Silvestre de Barros, que assinam a ação popular. O primeiro passo será criar uma empresa para a qual a Petrobras transferirá as refinarias, os terminais e os oleodutos. Em seguida, a companhia alienará a totalidade da sua participação na firma criada, “buscando se beneficiar da decisão do Supremo Tribunal Federal na medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5624, no sentido de que nos casos de alienação de controle acionário não se exige licitação, apenas procedimento concorrencial que observe a Constituição”.
A advogada Raquel Sousa argumenta que “o artigo 64 da Lei do Petróleo autorizou a Petrobras a constituir empresas subsidiárias, apenas e tão somente para o ‘estrito cumprimento de atividades de seu objeto social que integrem a indústria do petróleo.’ É evidente que o ato de criar uma subsidiária apenas para alienar seus ativos sem licitação não se encaixa naquela condição”.
O que a advogada descreve caracteriza, portanto, uma manobra ou, nas suas palavras, “flagrante desvio de finalidade com o indisfarçável intuito de alienar os seus ativos sem obedecer às regras da Lei das Estatais (13.303, de 2016) que exigem a licitação para a venda de ativos”. Feita por meio de um contorcionismo legal descrito no texto da ação popular, a operação “caracteriza evidente desvio de finalidade”.
Os enormes prejuízos que o Brasil terá com a desestatização foram detalhados pelo consultor técnico na área de petróleo e gás Paulo César Ribeiro Lima, engenheiro que trabalhou na Petrobras e foi consultor do Congresso Nacional, em audiência pública na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados na quarta-feira 10. “A privatização provocará grande elevação no custo médio de produção dos derivados. Esse custo nas refinarias da Petrobrás, com o barril do petróleo cotado, por exemplo, a 65 dólares, gira em torno de 1,337 reais por litro. Se elas forem privatizadas, o custo médio poderá aumentar para cerca de 2,001 reais por litro, com uma variação da ordem de 66,8%”, disparou Lima. A venda do refino, é possível concluir, torna mais prováveis novas greves de caminhoneiros.
Além disso, prosseguiu, a flexibilidade e a abrangência das deduções previstas em lei poderão gerar uma grande perda de arrecadação de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e outros tributos federais, de 338 bilhões de reais nos estados e municípios e de 662 bilhões para a União, pelo fato de os royalties serem deduzidos da base de cálculo do IRPJ. No caso da produção da província do pré-sal sob o regime de partilha na Região Nordeste, poderá ocorrer uma perda de receitas de 141,4 bilhões de reais em consequência da ausência de repasses daquele imposto. “A tão celebrada descoberta do pré-sal pode significar, portanto, um empobrecimento dos estados e municípios nordestinos, onde vivem mais de 8 milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza extrema”, alertou o ex-engenheiro da Petrobras.
A privatização, disse, “é totalmente ilegal, a estatal está criando uma subsidiária para vender. Isso é fraude, legalmente as refinarias não podem ser privatizadas. É burla. A justificativa da empresa é focar em exploração e produção, mas hoje os únicos que fazem essa bobagem no mundo são os administradores da Petrobras. Exxon, Shell e todas as outras grandes companhias petrolíferas têm parque de refino e distribuição”.
Segundo Lima, “poderíamos ser autônomos em diesel, o principal derivado, mas não somos, porque o preço de paridade internacional absurdo faz com que o povo pague o preço dos Estados Unidos mais fretes, custos portuários e margem de lucros por todo o diesel consumido no Brasil, incluindo o importado e o produzido pelas refinarias da Petrobras”.
O presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras, Felipe Coutinho, destacou que “somente a Petrobras consegue suprir o mercado doméstico de derivados com preços abaixo do custo de importação e ainda assim obter resultados compatíveis com a indústria internacional e sustentar elevados investimentos que contribuem para o desenvolvimento nacional. A política de preços dos combustíveis e a privatização das refinarias podem, entretanto, impedir que a estatal exerça seu potencial competitivo para se fortalecer e impulsionar a economia nacional com seu abastecimento com os menores custos possíveis. É possível e necessário reduzir o preço dos combustíveis e, para isso, temos de evitar a privatização e a desnacionalização das refinarias da empresa pública”.
Privatizar as refinarias, terminais, bases logísticas e a distribuidora da Petrobras, diz, é condenar a companhia a ter resultados empresariais débeis diante das inevitáveis variações cambiais e do preço internacional do petróleo e colocar o Brasil sem autonomia para o transporte de seus habitantes e mercadorias, em prejuízo da produtividade da nossa força de trabalho e da economia nacional. “A privatização dos ativos de abastecimento e distribuição pode auferir recursos a curto prazo, mas compromete definitivamente os resultados futuros da Nação e da companhia e expõe os brasileiros a riscos desnecessários, na contramão da integração vertical adotada pelas maiores companhias privadas e estatais internacionais.”
Para o presidente da Aepet, vender refinarias ao setor privado vai enfraquecer a empresa brasileira em um movimento na contramão das companhias internacionais do setor que retomaram os investimentos no parque de refino mundial. Além disso, as petroleiras nacionais estão se fortalecendo em todo o mundo, inclusive através da expansão e integração da capacidade de refino com a petroquímica, como fazem as grandes companhias petrolíferas da China, Índia, Indonésia, Malásia, Rússia e Oriente Médio.
“Produzimos petróleo e refinamos no País, mas a direção da Petrobras, desde 2016, decidiu adotar preços proporcionais aos da importação para os combustíveis que produz. Com preços altos em relação ao custo de importação, o diesel da estatal fica encalhado nas suas refinarias e parte do mercado doméstico é transferida para os importadores. A ociosidade local aumenta, há redução do processamento de óleo e da produção de combustíveis. Cresce a exportação de petróleo cru. Combustíveis refinados nos EUA são trazidos ao Brasil por multinacionais estrangeiras de logística e distribuídos pelos concorrentes da Petrobras”, critica Coutinho.
A estatal, diz, perde com a redução da sua participação no merMídiacado. O consumidor paga mais caro sem necessidade com o alinhamento aos preços internacionais do petróleo e à cotação do câmbio. Ganham as refinarias dos EUA, as multinacionais da logística e as distribuidoras privadas. Também são beneficiados os produtores e importadores de etanol, com a gasolina relativamente mais cara que perde mercado.
A combinação do desmonte da Petrobras com a dilapidação do pré-sal é catastrófica para o País, sublinha Coutinho. “O pré-sal já responde por quase 60% da produção nacional. Em dez anos, alcançou mais de 1,5 milhão de barris equivalentes por dia, patamar alcançado em 50 anos de produção no Mar do Norte. É necessário limitar a exportação de petróleo cru e diminuir a velocidade dos leilões porque se está alienando um recurso estratégico para exportação por multinacionais estrangeiras. Esta alternativa não viabiliza o desenvolvimento da economia nacional.”
O renomado geólogo Guilherme Estrella, chefe de uma das equipes que descobriram o pré-sal em 2006, sublinhou durante a audiência pública da Câmara dos Deputados que “petróleo e gás natural representam geopolítica mundial, fator de segurança absolutamente central. São e continuarão a ser a principal fonte de energia da humanidade pelos próximos 30 a 40 anos. Não há como modificar isso. A matriz energética brasileira é a mais equilibrada do mundo, com 45% de renováveis e 55% de fósseis. No Brasil consumimos pouca energia, somos a 9ª economia e a 63ª em consumo de energia per capita. O potencial de crescimento de consumo de energia é muito grande”.
O pré-sal, chamou atenção Estrella, é a maior província petrolífera descoberta nos últimos 50 anos. Depois do Mar do Norte, praticamente esgotado, é o petróleo do pré-sal que tem uma importância e um interesse estratégico absolutamente fundamentais para os grandes países hegemônicos do mundo. “Na gestão do pré-sal, a sociedade brasileira precisa ter essa preocupação de manter não só a soberania como o plano para seu aproveitamento de longo prazo, porque os campos se esgotam, os da Bacia de Campos, por exemplo, já estão produzindo muito pouco. Portanto, os campos do pré-sal também vão enfrentar declínios de produção. Se nós começarmos a produzir grandes volumes de óleo num curto prazo de tempo, daqui a 20 anos estaremos com problemas. A manutenção do pré-sal sob gestão autônoma e soberana do governo e da sociedade é fundamental para planejarmos e projetarmos o Brasil para todo o século XXI”, alertou o geólogo.
O pior engano que um país pode cometer em relação à sua estratégia de desenvolvimento nacional, sublinhou Estrella, é deixar que uma oportunidade se transforme em uma ameaça, e é isso que estão fazendo com o pré-sal brasileiro. “A grande chance do Brasil no século XXI de se tornar um país desenvolvido, avançado, com ciência e tecnologia, engenharia e todos os aspectos positivos da industrialização está escorrendo por entre os dedos. Estamos transformando essa oportunidade em ameaça de o País ser submetido a interesses estrangeiros e frear o nosso desenvolvimento minimamente autônomo”, chamou atenção o geólogo.
O desrespeito aos princípios constitucionais por parte da presidência da Petrobras, apontado no teor da ação popular para barrar a desestatização das refinarias, é de estarrecer. A privatização de um patrimônio público bilionário sem licitação, dizem os advogados, para que ninguém “de fora” possa saber o que está acontecendo, é um ato evidentemente imoral. “Simplesmente, a ‘venda’ está sendo negociada sem o conhecimento da sociedade, que apenas será informada do resultado a posteriori. Com base em que estatuto o réu Roberto Castello Branco quer alienar as refinarias? Vender sem licitação é uma atitude ineficiente por natureza, uma vez que inibe a obtenção do melhor preço. Sob a gestão de Castello Branco, acusam os advogados, “a Petrobras continua agindo como se fosse um ente soberano, ignorando que existem leis no Brasil”.
Via Carta Capital