Por William Nozaki* e Rodrigo Leão**
Desde 1997 com a promulgação da Lei do Petróleo e, depois em 2009, com a criação da Lei do Gás, o Brasil vive um ambiente de maior abertura para o setor de petróleo e gás. A despeito do continuo processo de abertura, a Petrobras preservou seu papel de principal coordenador e investidor do setor de gás natural no Brasil. Como lembra Romeiro (2016)1, foi o monopólio de fato da Petrobras que impulsionou o desenvolvimento de “toda a infraestrutura da cadeia de suprimento assumindo riscos estranhos à natureza da indústria, relacionados à variabilidade imprevisível da demanda termelétrica no país. Sob este contexto, a estrutura verticalmente integrada da Petrobras garantiu o suprimento e proveu elevada flexibilidade ao sistema”.
A abertura combinada com a manutenção de uma empresa verticalizada é fundamental para o desenvolvimento integrada da cadeia produtiva do gás natural. Primeiro, porque neste segmento há uma grande sincronia entre oferta e demanda para que os investimentos sejam efetivados, isto é, a construção de um gasoduto de transporte vai depender da existência de um distribuidor e de um potencial de comercialização. É justamente por isso, que há uma tendência quase que natural dessas indústrias se integrarem verticalmente. Segundo, pois o Brasil ainda é uma indústria pouco madura de gás natural e, pela ausência de atores operacionais, de infraestrutura e financiamento, a verticalização é mais adequada, principalmente numa empresa de grande porte com maior capacidade de arcar com riscos econômicos de longo prazo.
A Lei do Gás, por exemplo, criou um ambiente mais desregulado preservando o papel coordenador da Petrobras. Embora o Ministério de Minas e Energia (MME) tivesse ampliado suas competências regulatórias imprescindíveis para a organização do setor gasífero, como na decisão sobre a construção e ampliação de gasodutos, o grande operador setorial continuou sendo a Petrobras.
No entanto, com o programa Gás para Crescer, construído pelo MME no biênio 2016-2017, em parceria com outros atores governamentais e empresariais, o setor de gás deve presenciar a entrada de atores privados e, principalmente, restringir as condições de coordenador setorial realizado até então pela Petrobras mediante o estabelecimento de uma regulação do gás natural no país nas etapas de processamento, transporte, bem como na distribuição e comercialização.
O processo de escoamento, processamento e acesso a terminais de GNL, antes orientados pelas necessidades de fornecimento, passam a ser orientados pela garantia do acesso prioritário para os proprietários e o acesso deve ser negociado caso a caso com a iniciativa privada.
No que se refere ao transporte a principal mudança diz respeito ao encolhimento do papel da Petrobras, do MME e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) em contraposição ao estabelecido pela Lei do Gás. Naquele marco, cabia a Petrobras coordenar a operação de transporte, com a nova regra a operação passa a ser gerida por transportadoras privadas independentes. De forma análoga, antes desse novo marco o MME em conjunto com a EPE eram responsáveis pelo planejamento logístico da malha dutoviária brasileira, de acordo com o Gás para Crescer essa responsabilidade é transferida aos planos de investimento dos transportadores privados credenciados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Nesse sentido o papel do Estado planejador perde espaço para a concepção do Estado como ente meramente regulador.
Mais ainda, no modelo anterior a contratação da capacidade de transporte era feita ponto a ponto nos gasodutos de transporte. Como há muitos trechos de interconexão na malha dutoviária brasileira, dada sua grande extensão, as avaliações ponto a ponto permitiam aferir o volume de gás subtraído em cada operação, por exemplo, de liquefação e regaseificação. A partir do novo modelo, a contratação de capacidade de transporte passa a se dar na modalidade de entradas e saídas, o que significa que a quantidade do volume contratado pode divergir da quantidade do volume entregue, possibilitando ganhos excedentes aos transportadores privados.
Além disso, o regime de concessão para gasodutos de transporte como regra geral está sendo substituído pelo regime de autorização, com possibilidade de contestação por outros transportadores interessados.
“A regulação da estocagem também está sendo alterada, deixando de ser uma concessão arbitrada pela Lei 8.666/93 e passando a ter regras específicas. Entretanto, como o governo não elucidou os detalhes dessa última diretriz não é possível ter clareza de quais empresas e interesses podem ser beneficiados com eventuais facilidades ou dispensas dos mecanismos gerais de licitação. Nesse caso, ao invés de preservar o papel desempenhado pela Petrobras, opta-se por gerar um cenário de grande incerteza sobre a gestão dos estoques.
Por fim, o regime anterior previa mecanismos de cessão compulsória da capacidade de transporte. Nos períodos sazonais em que as hidrelétricas sofrem com o baixo nível de águas, as termelétricas movidas a gás são mobilizadas a fim de suprir a demanda nacional, nesses períodos o aumento do gás transportado se impõe como garantia para o abastecimento de energia. Entretanto, na atual proposta a “cessão compulsória” é substituída pela “regulação da capacidade”, como os termos dessa regulação ainda são pouco claros, não é de se descartar o surgimento de eventuais problemas de abastecimento em função da impossibilidade de utilização de trechos dos gasodutos de transporte.
Do ponto de vista da comercialização, a negociação do gás em pontos físicos passa a ser substituída pela negociação virtual (virtual hubs), tal medida acompanhada do já mencionado modelo de transporte por entradas e saídas, pode criar descasamentos de preços e prazos entre o transporte e a comercialização do gás, a proposta ainda explicita a necessidade da restrição da fatia de mercado detida pela Petrobras. Além disso, a iniciativa tem como intenção e resultado financeirizar o preço do gás natural.
No que se refere à distribuição, por seu turno, a regulação estadual deve ser substituída pela regulação federal, com a liberalização gradual do mercado de cada unidade da federação. Há muita heterogeneidade entre os marcos regulatórios estaduais: São Paulo e Rio de Janeiro que privatizaram suas distribuidoras ainda na década de 1990, por exemplo, trabalham com modelos contratuais bastante distintos daqueles praticados por outras unidades federativas. A proposta de centralização em uma regulação federal não é contestável por si só, mas exige um conjunto de mudanças e articulações federativas que não podem ser feitas de maneira acelerada. Esse é somente mais um exemplo da principal inovação trazida pela nova regulação: a incerteza operacional de longo prazo. Esse aspecto junto com a financeirização e o menor papel da Petrobras devem dar o tom da política de gás a partir do Gás para Crescer.
ROMEIRO, D. As indefinições da indústria do gás no Brasil. Blog do Infopetro, 26 out. 2017. Disponível em: https://infopetro.wordpress.com/2016/10/26/as-indefinicoes-da-industria-do-gas-no-brasil/
*William Nozaki é Professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas da Federação Única dos Petroleiros (GEEP-FUP)
**Rodrigo Leão É mestre em desenvolvimento econômico (IE/UNICAMP). Foi gestor de planejamento da Fundação Petrobras de Seguridade Social (Petros). Atualmente, é integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas (GEEP) da FUP e pesquisador visitante do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA)