Por Frei Sérgio Antônio Görgen(*), do MPA
Participei entre os dias 5 e 14 de dezembro de 2017, durante 10 dias, de uma Greve de Fome em Brasília, dentro da Câmara dos Deputados, deflagrada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, contra a desdita Reforma Previdenciária proposta pelo governo Michel Temer. Iniciamos em três pessoas. Fiz companhia às camponesas Josineide, do Piauí e Leila Denise, de Rondônia. No dia 11 de dezembro aderiram mais três camponesas, Rosa, do Rio Grande do Sul, Simoneide, do Piauí e Rosângela, de Roraima, esta, dirigente nacional do Movimento de Mulheres Camponesas – MMC.
Descrevo aqui algumas impressões e algumas conclusões de cunho pessoal sobre este acontecimento.
Antes de mais nada, foi uma Greve de Fome protagonizada por mulheres. Pelo que conheço da história de outras Greves de Fome, é caso novo na história. Duas mulheres participaram desde o início e três se somaram ao longo do período. Talvez como sinal de que as mais atingidas por esta legislação sejam de fato as mulheres. Mas pode ser também que um novo protagonismo histórico esteja brotando nas classes populares brasileiras com muita força: o protagonismo feminino.
Durante os dez dias dentro da Câmara dos Deputados, irrompeu como força comovedora e mobilizadora a bravura, a coragem e a serenidade das cinco camponesas, com destaque às duas que completaram 10 dias sem ingerir alimentos sólidos.
Também impressionou o testemunho silencioso e ao mesmo tempo eloquente: as que produzem o alimento que vai à mesa de tantos privando-se dele para chamar a atenção dos que se locupletam pessoalmente vendendo direitos dos pobres e as riquezas da Nação.
A força moral de uma Greve de Fome se afirma e se justifica – para quem a faz e para a sociedade – pela justeza de sua causa. É um ato extremo para situações extremas, quando outros métodos de persuasão já não fazem o efeito desejado para sanar uma injustiça flagrante de amplas consequências. Por isto afirmávamos: “ decidimos passar fome por alguns dias para evitar que milhões passem fome uma vida inteira”.
Representávamos, portanto, os que produzem os alimentos e as riquezas do país, através de seu suado esforço e trabalho e correm o risco de passar fome, na fase mais difícil da vida, na fase em que as forças lhe faltam para ganhar o pão com as próprias mãos, na velhice. Nós nos alimentávamos disciplinadamente de água e soro e as massas camponesas, operárias, pessoas sensíveis de todos os matizes, de todas as categorias dos que vivem do trabalho, nos alimentavam com solidariedade e força espiritual.
A Greve de Fome foi aos poucos se transformando num símbolo contra os que vivem da renda do dinheiro e enchem a pança e refestelam-se em lautos banquetes regados a vinhos finos e caros de reservas antigas. Foi o poder do povo contra o poder do dinheiro.
Um momento de grande densidade espiritual foi a presença amiga, solidária, humilde e firme de Dom Sérgio Rocha, Cardeal de Brasília e Presidente da CNBB. Fortaleceu-nos e estimulou. Foi uma presença de Fé e humanidade e de fé na humanidade.
Permitam-me compartilhar que para mim, pessoalmente, uma Greve de Fome é também um jejum espiritual. E neste tive muito presente uma passagem do Evangelho de Lucas onde Jesus faz conta a história do Bom Samaritano. Diz Jesus no relato de Lucas, que um homem foi assaltado, espoliado, ferido e deixado gemendo à beira do caminho. Passou por ali um Sacerdote, viu e foi adiante.
Os sacerdotes eram considerados o grupo social mais importante na sociedade judaica da época. Por ali passou também um Levita, pessoa de alta consideração social. Viu e passou adiante. Por fim passou um Samaritano, um desclassificado para os judeus daquele tempo, viu, sentiu compaixão, achegou-se, cuidou dos ferimentos, levantou-o e ajudou-o a chegar até o povoado mais próximo para que pudesse se recuperar.
Confesso que já me senti tantas vezes como aquele sacerdote ou como o levita da história. Algumas vezes tentei ser como o samaritano. Mas nunca antes havia me colocado no lugar do espoliado e excluído deixado caído à beira da estrada.
Pois foi assim que me senti inúmeras vezes nos corredores da Câmara dos Deputados. Milhares de samaritanos de perto e de longe nos estenderam a mão solidária. Mas muitos passavam, viam e seguiam adiante, quase sempre virando o rosto na direção contrária de onde estávamos.
Pensava comigo que se fizessem isto somente ali, conosco, compreendê-los-ia. Afinal, representávamos também uma posição política, talvez contrária a deles. Mas me fica a forte impressão de que agem da mesma forma diante da dor e do sofrimento de milhões e milhões de brasileiros, pobres e desempregados, despojados e ameaçados em seus direitos. E o fazem da pior maneira: através de leis e políticas que os atingem, despojam e jogam na exclusão.
No relato de Lucas, porém, o sacerdote e o levita assim agiram como geste espontâneo, por pura insensibilidade humana. Na Câmara dos Deputados a insensibilidade é remunerada e muitos viram o rosto a soldo dos que lucrarão com a espoliação dos pobres.
Concluindo, gostaria de ressaltar que gestos simbólicos podem ser importantes. Mas a verdadeira esperança de mudanças profundas no Brasil só virão com a organização popular e com o povo tomando as ruas. A indignação nas redes sociais é importante, mas insuficiente. Trabalho de base e formação continuam insubstituíveis e nos darão musculatura para tomar as ruas de forma organizada e firme e apontar horizontes de esperança para o povo brasileiro.
*Frade Franciscano, militante do MPA e autor do livro “Trincheiras da Resistência Camponesa”