Uma nota técnica da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho pede a revagação da Portaria 1.129, do próprio ministério, por registrar “diversas inconsistências” na norma publicada na última segunda-feira (16), que altera a caracterização do trabalho escravo. Segundo a Nota Técnica 268, encaminhada ao ministro Ronaldo Nogueira, vários dispositivos “se mostram manifestamente ilegais”.
É a segunda vez na semana que a área responsável pela fiscalização e prevenção ao trabalho degradante se manifesta. Na segunda-feira (16), ao deparar com a portaria no Diário Oficial da União, o secretário João Paulo Ferreira Machado já havia distribuído memorando (orientação interna) aos auditores-fiscais no qual revela que a SIT não foi consultada pelo ministério para a decisão. Afirma ainda que a resolução contém “vícios técnicos e jurídicos”, atenta contra a Constituição e que pediria a sua revogação.
Conforme a nota técnica, encaminhada nesta quinta-feira (19) ao ministro, as ilegalidades decorrem, inicialmente, de afronta à definição de trabalho análogo ao de escravo prevista no Artigo 149 do Código Penal. E também por “configurarem interferência” nas funções da inspeção do trabalho, o que fere a Convenção 181 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), além de significar “afronta ao princípio da vedação ao retrocesso social, previsto no Pacto de San José da Costa Rica”, referência à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, à qual o Brasil aderiu. O texto diz ainda que a portaria mitiga “a presunção de veracidade inerente aos atos administrativos exercidos pelos agentes da inspeção do trabalho e desrespeitarem o devido processo legal”.
Ao final do texto de 30 páginas, a auditora Luena Xavier, da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), conclui que a norma assinada pelo ministro configura “inquestionável retrocesso na política brasileira de combate e erradicação do trabalho análogo ao escravo” e que, portanto, “resta evidente que a Portaria nº 1129/2017 constitui um ato administrativo manifestamente ilegal”. A nota técnica tem a concordância do chefe da Detrae, Maurício Krepsky Fagundes, e a aprovação do secretário de Inspeção do Trabalho substituto, João Paulo Ferreira Machado.
Segundo a NT 268, “além de trazer conceitos distorcidos e restritivos quanto ao que seja jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho, atrelando-os à comprovação de cerceamento de liberdade ou mesmo relativizando-os diante da vontade do trabalhador”, a forma como a portaria foi redigida restringe a caracterização de trabalho escravo a apenas três situações: exigência de trabalho sob ameaça de punição, cerceamento de uso de transporte por parte do trabalhador e manutenção de segurança armada e retenção de documentação pessoal do trabalhador.
Além disso, a norma do Ministério do Trabalho determina que os autos de infração deverão conter, obrigatoriamente, itens como existência de segurança armada na proteção do imóvel, impedimento do deslocamento do trabalhador, servidão por dívida, existência de trabalho forçado e involuntário, “o que restringe e vulnera ainda mais a configuração de trabalho análogo ao de escravo pela fiscalização”.
Os autores da nota técnica observam que a definição legal do crime de redução à condição análoga à de escravo, contida no Artigo 149 do Código Penal, é “bastante clara” ao demonstrar que fatores como trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradante e cerceamento da liberdade “são elementos independentes que compõem o conceito de escravidão contemporânea”.
Eles explicam que o conceito de jornada exaustiva, por exemplo, “em nada depende do cerceamento da liberdade e não se refere exclusivamente à duração da jornada, mas à submissão do trabalhador a um esforço excessivo ou a uma sobrecarga de trabalho – ainda que em espaço de tempo condizente com a jornada de trabalho legal – que o leve ao limite de sua capacidade”.
Os técnicos também criticam a Portaria 1.129 por caracterizar “condições degradantes” apenas por atos de violação de direitos fundamentais”. E acrescentam, que “na imensa maioria dos casos elas se caracterizam por omissão do empregador, pela retirada dos direitos mais fundamentais do trabalhador, que passa a ser tratado como se fosse uma coisa, um objeto, e negociado como uma mercadoria barata, sem acesso a alimentação saudável, higiene ou moradia”.
A nota esclarece que, pelo Artigo 149, o trabalho escravo é tipificado penalmente por quatro condutas específicas: sujeição da vítima a trabalhos forçados; sujeição da vítima à jornada exaustiva; sujeição da vítima a condições degradantes de trabalho; e restrição, por qualquer meio, da locomoção da vítima em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. E acrescenta “cada uma dessas situações se caracteriza de maneira distinta e independente entre si, embora, sem dúvida, algumas situações possam ser verificadas na realidade das relações do trabalho combinadas entre si conforme consolidada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”.
O documento faz referência também a uma mudança de procedimento, prevista pela Portaria 1.129, em relação à chamada “lista suja”, cadastro de empregadores que usam mão de obra análoga à de escravo. A competência da divulgação sai da Detrae e passa para o gabinete do ministro. E afirma que “ao condicionar a divulgação do Cadastro à determinação expressa do Ministro do Trabalho, a Portaria nº 1129/2017 evidentemente afronta os princípios constitucionais da publicidade e transparência dos atos administrativos, fragilizando a veiculação de informações de tamanho interesse público”.
Via Rede Brasil Atual