Por Gustavo Henrique Freire Barbosa* para o Justificando
Em 09 de outubro de 1967, há exatos cinquenta anos, Ernesto Guevara de la Serna era executado por tropas do exército boliviano após uma malsucedida tentativa de repetir a experiência histórica do final dos anos 50 que acabou por levar os revolucionários de Sierra Maestra ao poder em Cuba.
A figura de Che já ganhara projeção internacional quando, entre 1957 e 1959, comentava-se sobre a intrepidez de um certo guerrilheiro argentino que lutava meio aos 88 rebeldes que, na madrugada de 25 de novembro de 1956, embarcaram no iate Granma e partiram da Cidade do México rumo à Cuba para pôr fim à ditadura de Fulgêncio Batista.
Antes de partir, Ernesto deixou uma carta para a mãe. Nela, escrevera que, “para evitar pateticismos pré-mortem”, a carta não deveria ser enviada até que “as batatas estejam realmente no fogo e então você saberá que seu filho, em um ensolarado país americano, estará se condenando por não ter estudado mais sobre cirurgia para socorrer um homem ferido (…)”. No fim, Che expõe a abnegação com que abraçara a causa revolucionária:
“E agora vem a parte difícil, velha, aquela da qual nunca fugi e sempre gostei. Os céus não ficaram negros, as constelações não saíram de suas órbitas nem houve enchentes ou furacões demasiado insolentes. Os sinais são bons. Eles indicam a vitória. Porém, se estiverem errados, afinal, até os deuses cometem erros, então eu acho que posso dizer como um poeta que você não conhece: ‘Eu só levarei para o túmulo/o pesadelo de uma canção inacabada’. Beijo-a novamente, com todo o amor de um adeus que resiste a ser completo. Seu filho”.
A carta de Che é um prenúncio da completa obstinação romântica e revolucionária responsável por imortalizar sua imagem enquanto símbolo e combustível das lutas que põem em xeque a perspectiva de que o mundo em que vivemos é o único e melhor possível, obra do mais alto grau de desenvolvimento da civilização humana.
Sua morte ocorrera meses antes do emblemático ano de 1968, marcado pela visceral contra-hegemonia do movimento hippie, da luta pelas liberdades civis nos EUA, da guerra de libertação do povo vietnamita, das guerrilhas latino-americanas e da Grande Revolução Cultural na China, dentre outros acontecimentos também de grande importância.
A contracultura e seus ideais de mobilização e contestação social encontraram solo fértil na década de 60. As movimentações do fatídico maio de 1968 na França, por exemplo, servem de inspiração até os dias de hoje. Em uma cena final de V de Vingança, filme inspirado na obra de Alan Moore, o protagonista, um anarquista que usa a máscara de Guy Fawkes (homem que liderou a “conspiração das pólvoras”, que pretendia assassinar o rei Jaime I em 1606 na Inglaterra), após sobreviver a uma saraivada de tiros, confronta o chefe da polícia secreta do regime ditatorial fascista que o perseguia. Ao se deparar com a incredulidade do sujeito por ainda estar vivo, responde que:Por trás desta máscara há mais que carne, há uma ideia, e ideias são à prova de bala.
Jon Lee Anderson, em “Che: uma biografia”, conta que, segundo a lenda, as últimas palavras de Che diante de seu algoz foram:
“Sei que você veio para me matar. Atire, covarde, você só vai matar um homem.”
Não surpreende o fato de alguns dos seus captores, a exemplo de Felix Rodriguez, membro da CIA e das brigadas anticastristas, terem sido reticentes a sua execução, cientes que criariam um mártir e, consequentemente, as condições para a imortalização dos ideais que gravitam em torno da imagem do revolucionário argentino. Sabiam, assim como V, que não é com tiros que se matam ideias.
Nestes 50 anos de sua morte, certamente matérias, artigos e textos requentados surgirão com maior intensidade nas redes sociais detratando sua figura histórica, com análises enviesadas que, embora intelectualmente desonestas em sua boa parte, são suficientes para contemplar os corações irresponsáveis dos preguiçosos acometidos pelo mal da pós-verdade, cujas fontes de informação são memes, montagens de Facebook e correntes de WhatsApp.
O desprezo aos fatos ou a qualquer réstia de pesquisa um pouco mais aprofundada é a argamassa ideológica que sustenta as versões mais convenientes às suas paixões.
Logo na introdução da biografia, Anderson expõe os motivos pelos quais decidiu escrevê-la, traçando um quadro não muito diferente do que vemos hoje:
“Havia poucos livros sobre Che ainda sendo impressos. A maioria tinha vinte anos e era formada por hagiografias oficiais cubanas ou demonizações igualmente cansativas, escritas por inimigos ideológicos. A vida de Che tinha mesmo que ser escrita porque muito dela ainda estava encoberta por sigilo, inclusive as circunstâncias misteriosas de suas horas finais na Bolívia, em 1967. Até o paradeiro de seu corpo era desconhecido”.
Embora Anderson afirme que “o maior desafio para mim foi romper a atmosfera beatífica que cercava a memória de Che”, chegou por mais de uma vez a se insurgir contra as acusações infantis de uma direita que parece ostentar a própria ignorância como orgulho.
Mesmo um biógrafo que se propôs a separar o homem do mito não pôde ficar calado diante de uma enxurrada de desonestidades e deturpações históricas contrárias ao resultado de sua pesquisa, exposto em mais de 800 páginas.
Goste-se ou não de Che, o fato é que, cinquenta anos após sua execução, seus ideais continuam sendo a matéria-prima da irresignação responsável por volta e meia a escancarar os verdadeiros propósitos de uma ordem voltada à garantia dos privilégios de uma minoria ínfima que se sustenta não apenas na apropriação privada e antidemocrática da riqueza coletivamente produzida, mas também na quimera de que qualquer um, com muito esforço e trabalho, pode um dia chegar lá.
As detrações raivosas evidenciam o perigo que Che ainda representa e, principalmente, o incômodo de suas ideias serem à prova não apenas de balas, mas das calúnias que insistem, em vão, em terminar o que se iniciou em 09 de outubro de 1967.
*Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor