Na segunda parte de seu depoimento ao Brasil 247, o diretor aposentado da Petrobras, Guilherme Estrela, recorda o papel de Lula na criação de regras do pre-sal, inclusive a condição da Petrobras como sua operadora única, centro dos questionamentos ao projeto de José Serra, em tramitação no Congresso. Líder da equipe que encontrou o pré-sal, Estrela diz que é justamente a posição de operadora única que pode garantir que a Petrobras se transforme numa das principais produtoras de petróleo mundiais.
Veja aqui a primeira parte da entrevista
247 – Nós sabemos que entre 2007 e 2010, quando o governo Lula criou e depois conseguiu aprovar as regras do pré-sal no Congresso, , o bicho pegou justamente na hora em que se garantiu a condição da Petrobras como operadora única, com participação obrigatória mínima de 30%. É justamente este ponto que o projeto de José Serra pretende modificar. Qual a importância dessa decisão?
GUILHERME ESTRELLA – Para entender: é o operador que decide a tecnologia de construção de poços e de produção de óleo e gás. Este trabalho oferece uma extraordinária oportunidade de pesquisa e desenvolvimento para todo tipo de inovações tecnológicas e operacionais. O pré sal brasileiro encontra-se a mais de 2000 metros de profundidade de mar. É a última fronteira geológica disponível para a produção de óleo e gás. A empresa que opera suas atividades será imensamente beneficiada, pois tudo passa por sua mão. Ela define a engenharia de projetos e de operação dos grandes sistemas de produção submarina. Também toma decisões sobre o trabalho no fundo do mar, a coleta e transporte até as unidades flutuantes, navios ou plataformas. São dimensões de amplo espectro, que representam o grande saldo de conhecimento para o futuro, para os novos mercados e novas oportunidades.
247 – Como se tomou a decisão de garantir a Petrobras como operadora única?
ESTRELLA – O governo sofreu pressões de todos os lados. Na própria Petrobras, um grande contingente de técnicos não conseguia vislumbrar a extraordinária oportunidade para o desenvolvimento nacional que a condição de operadora única representa. Havia a mesma dúvida em diversos níveis do governo federal. E é claro que já ocorriam pressões diretas das partes interessadas em mudar as regras a seu favor. Isso explica o email de agosto de 2009, quando a gerente no Brasil de uma petrolífera norte-americana, escreveu a seus superiores nos EUA. Alertava que o pre sal era uma grande ameaça aos interesses das empresas norte-americanas mas chamava a atenção para o fato de que se o candidato a presidente José Serra vencesse as eleições em 2010, aquele marco seria revogado. Convém lembrar que não foi a única manifestação neste sentido. Naquela época, recebi a visita de um cônsul dos Estados Unidos, em meu gabinete, falando do interesse de empresas de seu país em participar do pre sal. Ouvi um mesmo apelo de um executivo que visitei a trabalho no Texas.
247 – O que aconteceu de lá para cá?
ESTRELLA – Até aqui soubemos resistir a todas as pressões. Tanto a postura do presidente Lula, como a votação do Congresso, que aprovou a legislação adequada, garantiram à Petrobras as condições de realizar um processo de desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro, autônomo, em benefício da sociedade, da população e de empresas genuinamente brasileiras. Em cada área de competência, todos tiveram a oportunidade de mostrar capazes em escala mundial. A prova está na produção. Num prazo relativamente curto, em junho a produção do pré sal brasileiro fechou em 1,2 milhão de barris por dia, número recorde, que já representa quase metade da produção total do país.
247 – Ao lado do então presidente da Petrobras, Sergio Gabrielli, o senhor participou de discussões com o presidente Lula, em 2007, quando se confirmou a existência do pré sal. Como foi?
ESTRELLA – É preciso lembrar o que estava acontecendo no mercado mundial de petróleo naquele momento para se ter uma ideia da importância da discussão que fazíamos em Brasília. O Iraque havia sido invadido, ocupado e destruído. A causa, como o planeta inteiro sabia, era a crescente dependência energética da Europa do petróleo e gás da Rússia, e dos Estados Unidos em relação ao Oriente Médio. Neste cenário energético desesperador para as nações hegemônicas ocidentais, obrigadas a mobilizar a OTAN e a realizar uma guerra, o Brasil aparece do outro lado do Atlântico, tirando da cartola a maior província petrolífera descoberta em 50 anos em todo o planeta. Pode-se imaginar o tipo de pressão que passamos a receber.
247 – Quais pressões foram essas?
ESTRELLA – Por suas características, a descoberta do pré sal exigia uma mudança no sistema de exploração em vigor no país até então. O velho sistema de concessão precisava ser substituído pelo sistema de partilha, caso contrário o Brasil deixaria de receber os maiores benefícios da descoberta que acabava de ser feita.
247 – O que precisava mudar?
ESTRELLA – Sabemos que o regime de concessão só é conveniente em situações de risco, onde quem procura petróleo não pode saber o que vai encontrar após a perfuração. Em compensação, quando encontra o que procura, as regras lhe garantem a propriedade integral da área. Mas estava claro, na primeira exposição feita ao presidente, com base numa área chamada de “Picanha Azul”, porque tinha a forma de carne para churrasco, que não havia risco algum. Era um caso de risco exploratório zero. Neste caso, de risco zero, o regime de concessão deixava de ser interessante.Também precisávamos garantir que a Petrobras se tornasse a operadora única do pré-sal, em função dos benefícios envolvidos. Não eram, no entanto, decisões politicamente simples nem fáceis.
247 – Por que?
ESTRELLA – A simples perspectiva de que estávamos a tratar de uma província petrolífera imensa, em termos mundiais, não era aceita por todos, mesmo na Petrobras. Havia o receio de que, com todas limitações que o conhecimento da geologia apresenta – lida-se com dados indiretos, que devem ser interpretados – poderia ser muito arriscado para o governo tomar decisões desse porte. Além disso, queríamos fazer uma mudança de legislação que equivale a retirar a propriedade de grandes reservas técnicas das grandes empresas privadas internacionais, que são, mundo afora, as responsáveis técnicas por se apropriarem de reservas de petróleo e gás natural para abastecer seus países sede e lhes garantirem, estrategicamente, segurança energética nacional.
247 – Qual foi a reação a isso?
ESTRELLA – Estamos falando de uma mudança de enorme significado geopolítico, de abrangência mundial. Quando a descoberta do pré sal brasileiro foi tornada pública, em meados de 2007, a quarta frota da Marinha de guerra norte-americana foi reativada para atuar no Atlântico Sul, num sinal contundente de que a nação hegemônica ocidental havia inserido o Brasil e sua gigantesca descoberta entre seus interesses estratégicos.
BRASIL 247 – O que se passou a seguir?
ESTRELLA – Lula estava decidido a retirar a Picanha Azul da 9a. rodada de licitações da ANP, marcada para o segundo semestre. Eram necessários retirar os 41 blocos de uma licitação cuja abrangência já era formalmente conhecida, pelo edital já publicado. Apesar da posição do presidente, havia resistências internas. O argumento é que aquilo poderia ser interpretado como uma “quebra de regras já estabelecidas com o setor petrolífero mundial” e que poderiam haver “retaliações” por parte das empresas petroleiras estrangeiras no sentido de não mais investir no Brasil. Era este o debate. Em nada muito diferente daquilo que vemos hoje, como sabemos.
247 – O que Lula fez?
ESTRELLA – Nós, geólogos, engenheiros, pesquisadores, antevíamos a possibilidade do pre sal ser a viga mestra da energia necessária para o desenvolvimento do país. Era o que conseguíamos enxergar. O Lula, num estalo, bolou o fundo social a ser abastecido com abundantes recursos financeiros para saúde, educação, emprego e moradia, sem falar em ciência e tecnologia.
247 – Como o senhor entende o projeto elaborado pelo Serra?
ESTRELLA – Ele retira da Petrobras a responsabilidade de atuar como operadora unica do pré sal brasileiro. Cria o “direito de escolha”, outorgando a empresa a decisão de participar ou não dos consórcios formados nos leilos da ANP para disputar os blocos do pré sal.
247 – O que isso significa?
ESTRELLA – O projeto fere a essência do marco regulatório na media em que o abrangente leque de oportunidades de pesquisa e desenvolvimento pode ser transferido para outra empresa, certamente estrangeira, pois não há empresa de capital nacional com porte e capacitação para a atividade. O que se quer é mudar uma situação que vai selar a Petrobras como a mais competitiva e competente empresa petrolífera do planeta.
247 – A importância do pré sal é tão grande assim?
ESTRELLA – Estamos falando do filé mignon da indústria de petróleo mundial. Tanto é assim que, com base nos resultados obtidos pela Petrobras no Brasil, a Exxon norte-americana conseguiu um acordo para se tornar operadora única do pre sal em Angola. Ninguém vai dizer que a regra que vale para a Exxon não é boa para a Petrobrás, certo?
247 – Do ponto específico do Brasil, qual a vantagem da operadora única?
ESTRELLA – Na prática, significa renunciar a uma oportunidade – quem sabe única – de desenvolvimento tecnológico industrial sustentado.
247 – Um dos mistérios do pré-sal consiste em saber o que aconteceu com a Shell: como é que um dos gigantes privados do petróleo mundial, que chegou tão perto do pré sal, perdeu uma oportunidade dessas?
ESTRELLA – Realmente a empresa anglo-holandesa operou um bloco exploratório sob o regime de concessão, na mesma área onde mais tarde a Petrobras descobriu o campo de Libra. A diferença estava no conhecimento que a empresa possuía sobre a área. Ela tinha como objetivo fazer pesquisas nos reservatórios acima do camada de sal, que na bacia de campos são os principais produtores. Ao atravessar essa seção geológica, decidiu interromper a perfuração, dar o bloco como testado e devolver a área a ANP.
247 – Como isso foi possível?
ESTRELLA – Minha interpretação pessoal é que ocorreram dois fatores. Ao contrário da Petrobras, a Shell desconhecia as reais possibilidades daquele “sistema petrolífero” que produziu praticamente todo o petróleo e gás natural descoberto na extensa costa brasileira, em particular na bacia de Campos, até então a maior produtora. Também deve ter considerado os altos custos de prosseguir a perfuração. Sem poder avaliar o enorme potencial que poderia ser encontrado imediatamente abaixo de uma espessa camada de sal, decidiu não testá-lo.
247 – Pode-se concluir alguma coisa desse episódio?
ESTRELLA – É possível fazer várias reflexões. A primeira é lembrar que a atividade de explorar e produzir petróleo não é um negócio para banqueiros. Envolve grandes investimentos, alto risco e a possibilidade de grandes perdas. Quem for fazer cálculos na ponta do lápis irá concluir que é mais garantido investir na poupança da Caixa Econômica, em troca daquela modesta remuneração mensal. Um poço exploratório de petróleo em alto mar não custa menos de US$ 50 milhões. As chances de sucesso, na média mundial, são de uma descoberta em cada dez tentativas. É quase uma aventura, o que reforça a necessidade de investir em pesquisas, que permitem ter um conhecimento científico real, apoiado em realidades concretas. Essa foi outra diferença entre a Petrobras e as demais empresas. Nossas pesquisas sempre nos colocaram a frente em matéria de conhecimento em águas brasileiras. Os críticos podem não aceitar mas o pré sal confirma isso.
Fonte: Brasil 247