Como legitimar a desigualdade e a injustiça para manter privilégios? O primeiro passo é enraizar a ideia de inferioridade. No caso do Brasil, o conceito de que os brasileiros são naturalmente corruptos e de que a corrupção mora no Estado. Justamente, porque o Estado pode ser um mecanismo de combate à desigualdade.
O segundo passo é atacar qualquer iniciativa do Estado de combate à desigualdade e, quando não é possível vencer via democracia, buscar poderes ‘acima de qualquer suspeita’ para legitimar um golpe em nome do bem maior do país, papel que exerce o Judiciário atualmente.
A leitura é do presidente do Instituto de Pesquisa e Educação Aplicada (Ipea), Jessé Souza, durante a abertura do 19º Encontro Nacional de Formação da CUT, nesta quarta-feira (9), em Atibaia (SP).
Foto: Roberto Parizzoti (CUT)
Souza ressaltou que a dominação de classes é uma construção de séculos e, no Brasil moderno, acontece desde 1930 com apoio da ciência conservadora que pauta jornais, universidades e tribunais. E tomou conta até mesmo da esquerda que, para avançar, precisa desconstruir esse discurso.
Complexo de vira-lata
O discurso pregado pela elite brasileira de um país ‘naturalmente corrupto’ é desconstruído por Souza, que compara o Brasil com os EUA.
“Ninguém rouba melhor que os Estados Unidos, a diferença é que lá legalizam o lobby, lavam dinheiros em paraísos fiscais e nossa elite chama isso de virtude e democracia. Já morei lá e sei que ser filho de gente importante resolve muita coisa. Se rouba como aqui. A única diferença é que aqui toleramos produção de pessoas sem nenhuma condição de vida digna”, falou.
Já a ideia de Estado corrupto, ressaltou o presidente do Ipea, surgiu como contraposição ao modelo implementado pelo ex-presidente Getúlio Vargas.
“Isso começa em 1936 para montar uma concepção que combatesse o modelo de Estado de Getúlio. O que estava em jogo era tornar o mercado virtuoso e associar a corrupção, sempre seletiva, com o público. Mas isso só acontece quando há um dirigente com algum comprometimento com classes populares. E toda vez que isso aconteceu, houve golpe”, citando Vargas e João Goulart, presidente deposto pelo golpe militar.
Nesse momento, quando torna-se um obstáculo chegar ao poder por meio da democracia, dois atores entram em jogo: a mídia e uma instituição que esteja no limbo da insuspeita.
Souza defendeu que, se não é possível montar uma opinião sem acesso a visões diferentes, é a democracia que está em jogo e passa a vender o golpe como algo mais importante do que a soberania popular expressa no voto. “Esse veneno midiático ajuda a construir a ideia de que o cidadão pode não ser um bom pai, um bom marido, mas é ao menos um brasileiro democrata, campeão da moralidade, o mais honesto. A classe média, por sua vez, é vendida como a única classe moral porque seria a única que ainda consegue se escandalizar.”
O Judiciário
Depois de transformar o discurso em verdade e gerar a instabilidade, é hora de encontrar uma instância ‘neutra’ para promover a ‘limpeza’. No cenário atual, o Judiciário, ironicamente, braço do Estado onde impera a caixa preta, representa a consolidação de privilégios e vantagens corporativas, ressaltou Jessé Souza.
“Antes, quando chegava a uma situação de crise, elites organizadas chamavam generais. Mas, como militares torturaram e roubaram, ficaram inviabilizados. Agora o candidato é o poder judiciário, a instância neutra, acima do bem e do mal, nessa briga para que sejam mais importantes do que o voto.”
Para ele, o combate ao golpe passa pela seletividade justamente da Operação Lava Jato na investigação.
“Quando você diz que está contra corrupção, ganha aliados. Mas quando a apuração é parcil e só atinge alguns partidos e figuras políticas fica clara, a investigação começa a ser um tiro na água. Temos aliados em potencial. Mesmo na classe média, acredito que boa parte está num momento de reflexão para entender porque as coisas acontecem dessa forma parcial”, avaliou.
Na visão do dirigente do Ipea, a disputa está pelo que o Estado representa para a maioria. “Se houve melhoria na vida dos trabalhadores em todo o mundo, isso veio do Estado, nunca do mercado.”
Mudanças na educação
Também presente no primeiro dia do Enafor, a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Maria Ciavata abordou o papel da educação e, consequentemente, da formação no combate à desigualdade e nos debates sobre os rumos do país.
Para ela, o acesso ao ensino de qualidade não é prioridade porque gera consciência e uma demanda maior de salários e de lugares privilegiados. “O que a sociedade faz é buscar formas de abafar o que gera reivindicações de mudanças no que antes se denominava status quo.”
Ao abordar a educação técnica, Maria evocou o papel do Sistema S (com instituições como Senai, Sesc e Sesi), que angaria muitos recursos, junto com os investimentos destinados ao Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico) sem que isso gere transformações efetivas no chamado apagão de mão de obra, como definem os empresários. Além de deixar lacunas na formação do trabalhador.
“São muitos recursos, mas aplicados em cursos breves e ineficazes para conter desemprego e precariedade relações de trabalho.”
CUT na berlinda
A professora evocou também o papel da CUT na defesa da democracia e salientou como a atuação da maior central do país é essencial para garantir a democracia.
“O problema do autoritarismo é só admitir uma posição e tratar como inimigo quem pensa diferente. E o contraditório é fundamental para desenvolver um país e fazer a criatividade florescer. E a CUT é indissociável dos interesses da sociedade, especialmente neste momento, luta por um estado democrático e governos eleitos.”
Opinião compartilhada também pelo presidente da Confederação Sindical Internacional, João Felício, que, em uma análise da atual conjuntura, defendeu que não é mais possível acreditar em conciliações.
“Temos a missão de conscientizar o trabalhador sobre a importância de não lutar apenas por melhores condições de trabalho, mas também por outra sociedade. É o momento de fazermos essa reflexão. O PT abraçou demais a conciliação e não se deu conta de que a outra classe nunca gostará de nós. O mesmo que aconteceu na Europa, onde, agora, todos os direitos que conquistaram estão sendo retirados. A disputa que estamos fazendo tem de ter componente ideológico”, disse.
Esse componente, ressaltaram Rosane Bertotti e Sueli de Melo, secretária e adjunta de Formação da CUT, na primeira mesa do encontro, depende da forma como a Central dialoga com as bases.
“Só conseguiremos fazer a mudança e a transformação que defendemos se dialogarmos com mentes e corações que estão no cotidiano da luta, no campo e na cidade”, disse Rosane, enquanto, para Sueli, a Formação é quem tem o papel de afinar o discurso. “Temos o papel de instrumentalizar os companheiros para enfrentem os debates especialmente nesse momento de embate contra a direita e contra a elite”, definiu.
Fonte: CUT