Reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos não tem nada a ver com política de segurança pública. É uma simples uma jogada política. Isso é o que afirma Raquel Lima, coordenadora de pesquisa do programa Justiça sem Muros, do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), ONG que atua em defesa dos direitos de presos e presas do Brasil. “É um tema que, em qualquer momento, tem adesão popular e mobiliza, atingindo uma demanda que as pessoas têm de se sentirem mais seguras”, diz ela. Na entrevista, Lima analisa como as forças conservadoras do Congresso usam a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171 como “carta política” contra o governo federal, os lucros de empresas que realizam manutenção de presídios e questiona: “educação é na pancada?”.
Confira a entrevista originalmente publicada no Brasil de Fato:
De tempo em tempos, o tema da redução da maioridade penal é discutido no Congresso. Porém, nesse ano ele veio com mais força. Por quê?
É muito menos por motivos relacionados à violência e à segurança pública e muito mais devido ao contexto da política nacional. Essa Proposta de Emenda Constitucional é um projeto antigo, de 1993, que já emergiu na Câmara em outros momentos. Agora ganhou força devido ao enfraquecimento do Poder Executivo federal. Para os movimentos de direitos humanos era, relativamente, seguro impedir o avanço conservador e o retrocesso dos direitos dos adolescentes. Havia o respaldo do direito internacional – que apregoa que a maioridade penal deva ser a mais alta possível e que punições aos jovens sejam brandas – e o respaldo nacional no Legislativo. A Justiça Federal prevê o direito das crianças e adolescentes com um conjunto de garantias, com a responsabilidade dividida entre Estado, família e sociedade. É nesse contexto que se estabeleceu a maioridade penal com 18 anos no texto da Constituição – sendo uma clausula pétrea, uma garantia que não pode ser modificada por Emenda Constitucional – e no conjunto de direitos das crianças e adolescentes. Nesse ano, começamos com o Executivo enfraquecido, o que revela a vulnerabilidade da atual composição do governo, tanto em relação à bancada no Legislativo quanto na influência às pautas do Congresso. O tema da redução da maioridade penal não foi escolhido por acaso, é muito simbólico para mostrar o enfraquecimento do governo federal no Congresso.
Redução da maioridade penal é, então, tema muito vendável?
É um tema que, em qualquer momento, tem adesão popular e mobiliza, atingindo uma demanda que as pessoas têm de se sentirem mais seguras. Parece que escolheram a redução da maioridade penal para falar: “olha, vocês [governo] estão tão enfraquecidos que até esse tema eu posso virar”. Isso é bem representado na figura do presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha [PMDB-RJ]. Soma-se a isso a propagação de uma grande quantidade de notícias na mídia – principalmente nas últimas semanas – de crimes envolvendo adolescentes. Porém, não se aumentou nas últimas semanas esses crimes, claro. É uma estratégia para bater no governo.
Há uma questão simbólica e política. Também existem interesses econômicos por trás dessa discussão?
Já existe uma demanda, independentemente da prisão de adolescentes, para o oferecimento de serviços privados nas unidades prisionais. Mas primeiro é preciso falar dos dois modelos que estão em discussão no sistema carcerário brasileiro: a iniciativa privada que controla a administração de presídios e as Parcerias Público Privado (PPPs), que realiza a construção e administração com um contrato de longa duração. No modelo PPPs, a quantidade de pessoas por unidade é fundamental: recebem por pessoas e, como o investimento foi privado, vão recuperar o dinheiro quanto mais pessoas estiverem presas. São apresentadas como modelo por ter um ambiente “limpo”, “bonito” e sem superlotação. Isso porque as unidades estaduais precisam ser superlotadas para garantir o contrato com essas empresas privadas. No cenário da redução da maioridade penal, aumentaria o número de pessoas nos presídios de adultos, então, portanto, há o interesse desses grupos que exploram a manutenção dos presídios. Porém não acredito que isso seja a força motriz: o sistema carcerário adulto tem muito espaço para ser explorado, tanto para construção quanto para serviços como alimentação, guarda etc.
Mas isso não representaria aumento dos lucros para esses empresários?
O argumento da redução, aliada ao econômico, ajuda a vender. As empresas que têm interesse em explorar, claro, apoiam essa pauta, já que poderiam ter mais presos, logo, mais lucros. Mas são as forças políticas que mobilizam as forças econômicas para apoiar essa pauta, já que, quantitativamente, o número de presos adolescentes não é tão grande.
Essa pauta, desde 1993, é só uma pauta de mobilização ou é real a possibilidade de aprovação?
É bem real, já que mobiliza e responde aos “anseios” da sociedade. O deputado Cunha tem feito isso de forma ardilosa. Sempre existiu essa questão, mas ela foi resinificada depois das manifestações de junho é contrária ao governo da Dilma. Responder aos anseios populares agora teria mais concretude. A redução da maioridade penal mostraria que o Congresso está dando uma resposta à população. A proposta soma muitas pautas e interesses e pode ser aprovada, sim. Entrar em vigor será mais difícil, pois o Supremo Tribunal Federal pode contestar a constitucionalidade. Porém, ao aprovar uma PEC como essa, pode-se criar uma cortina de fumaça para outras reformas que visam recrudescer o tratamento dado aos jovens. Um exemplo disso são os projetos de lei que tramitam no Congresso para aumentar o tempo de internação dos adolescentes e a detenção provisória. Aprovar uma lei é muito mais fácil que aprovar uma PEC, nem precisa votação em Plenário ou trâmites em comissões.
O que explica uma proposta como essa, de penalizar adolescentes?
Eu sempre penso no exemplo da lei da palmada, que gerou uma reação social absurda: “não podemos mais bater em nossos filhos?”. A sociedade brasileira é violenta e tende a permitir que adolescentes e crianças sejam disciplinados agressivamente. Colocar o adolescente internado o máximo de tempo possível é bem aceito, afinal, se acredita que se educa com dureza. Mas não se chama socioeducativo? Educação é na pancada? A educação baseada na violência é muito bem vista ainda hoje.