José Tanajura Carvalho*
As conquistas do Brasil nos últimos doze anos, quanto ao posicionamento independente da política internacional e da crescente participação do trabalhador no resultado econômico, levaram o governo a aturar pressões de toda ordem. Numa onda conservadora, que assola o país, nesse ano de 2015, os setores internos financeiro, industrial, latifundiário e da elite técnico-burocrática (Setores Internos), e os interesses dos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha e Japão (Setores Externos), afinam-se no propósito de suprimir tais conquistas e na volta ao passado de sujeição.
É certo que já foi a era de se reprimir os ímpetos nacionalistas e populares na América Latina com tropas na rua, ainda que marionetes destrambelhados vociferem nesse sentido. Seja por conta do esgotamento das alternativas ditatoriais em promoverem governabilidade e governança, pela incapacidade de compreender a complexificação do tecido econômico-social e do transcurso da história. Cujos exemplos notórios são o próprio Brasil, o Chile, a Argentina e o Uruguai que, na marcha da redemocratização, terminam por apresentar brechas à eleição de governos com inspirações nacionalistas e partição de poder e benefícios.
Quer seja ainda diante das contradições imanentes no processo de mundialização, desencadeado no final do século passado, o qual se caracteriza pelo livre fluxo de mercadorias e desregulamentação da economia, e fazem aflorar a apropriação de excedente sem desenvolvimento, corespondente à financeirização da economia. Uma pantomima impossível de se sustentar concomitante às conquistas políticas celebradas no breve decurso democrático. Num cenário no qual os problemas de derrocada do domínio global dos Estados Unidos e de seus parceiros são agravados com a crise hipotecária e de derivativos, iniciada em 2008, e com a concorrência da China, ao se despontar como a maior economia mundial. Entretanto, esses países não largam e nem podem largar — os interesses do oligopólio internacional o determinam — a presunção senhorial. No entanto, a nova ordem que se encaminha os faz sentir o anelo de donos do mundo escapar-lhes entre os dedos.
Para os Setores Externos e os Internos, portanto, é essencial a retomada conservadora em relação ao Brasil, na medida em que as suas disposições nacionalistas e populares dos últimos doze anos se apresentam como embaraços à dominância econômica oligopolista. Os Setores Internos, apesar dos lucros fantásticos auferidos nos últimos anos, radicalizam seu posicionamento oposicionista aos governos de atuação popular, pela ambição por ganhos cada vez maiores e a apreensão de que as alterações políticas possam vir a não lhes permitir a superexploração do trabalho, tão bem avaliada por Ruy Mauro Marini. Por sua vez, os Setores Externos têm em conta que a liderança brasileira, além dos embaraços à dominância interna, fazem surgir e radicalizar posicionamentos nacionalistas e populares em diversos governos da América Latina, com potencial de influência também no Oriente Médio e África. Não seria exagero dizer que, no tocante às manifestações de indignação populares nos Estados Unidos e na Zona do Euro, o exemplo dos governos populares brasileiro tem particular significado.
Está claro, por exemplo, que os Estados Unidos não esquecem e nem perdoam o firme posicionamento brasileiro contrário às propostas sobre a Área de livre comércio das Américas — ALCA. Por certo um tratado para engambelar os países latino-americanos e perpetuá-los na dependência por produtos intensivos de tecnologia, e em meras fontes de produtos primários e força de trabalho mal remunerada. Realidade que se constata atualmente no México e no Chile em decorrência de terem aderido, este último como membro associado, a verdadeiro recall da ALCA, que se constitui no North American Free Trade Agreement — NAFTA. A posição soberana do Brasil se confirma, no presente, na participação dos BRICS, alternativa para uma nova rota de relações entre as nações.
Tudo isto gera reação dos Setores Externos e Internos que se articulam objetivamente e estabelecem formas neoliberais para persistir o mando. A reação se conduz no renascimento das cabeças da hidra conservadora e na destilação de seus venenos para o hálito lutífero. O primeiro ato se desenrola no desvanecer da política, instituições e economia nacionais, e no escarnecer do governo e das forças — os sindicatos, os movimentos sociais, os partidos e outros — que o sustentam e fazê-los todos frágeis, sem condições de representatividade e disposição na defesa das conquistas nacionalistas e populares. Em seguida, trata-se de articular furtivamente instrumentos de degeneração do arcabouço institucional vigente e impor outro que, transvertido em figurações dissimuladas em palavrório tecnoburocrático e demagógicos, visam quebrar o processo de construção da identidade nacional e dos direitos sociais, frutos de conquistas históricas.
Tenta-se, por todos os meios, acrescer à Constituição o financiamento da política por empresas, com o propósito de garantir exclusivos interesses privados nas eleições a cargos de parlamentares nas três esferas de poder — vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores — que, afinal, são aqueles que fazem as normas de gestão do país. Assim posto, uma liderança de base popular, se eleita para prefeito, governador ou presidente, dificilmente se verá livre de se tornar refém das determinações formais estabelecidas ou aconchavadas em acordos políticos segundo os interesses de representantes parlamentares eleitos com a influência direta das empresas. Caso o financiamento privado das eleições se confirme, haverá o retrocesso no processo político brasileiro com a condução do país ao regime mais obscuro em termos de liberdade democrática e de soberania nacional, na medida em que se caracterizará pela asseveração do corporativismo elitista e exprooriação do excedente em níveis jamais vistos. Tal realidade já se manifesta no Congresso Nacional, no qual se pronuncia através de bancadas disto e daquilo outro — uma parafernália de interesses privados e das mais retrógradas ideias — e nas Assembleias Estaduais. Mas essa é uma realidade factual nos municípios sedes de grandes empresas monopolistas, principalmente compostos por mineradoras — que poderá vir a se assegurar em verdadeiras Capitanias Hereditárias, caso o projeto do Marco Regulatório da Mineração, em discussão no Congresso, seja aprovado, haja vista contar com o descabido apoio de pseudos representantes de base popular. Assim como se constata naqueles municípios com siderúrgicas e setor de alimentação.
Algumas questões, no entanto, não dependem única e diretamente de normas formais, conquanto suas soluções possam ter arranjos que passam pelo institucional. É o caso, por exemplo, do crescimento dos salários nos últimos doze anos. Em parte, tal crescimento se deve à taxa decrescente da população, que influencia a população ativa do país (potencial de mão-de-obra com que pode contar o setor produtivo, segundo o IBGE), contribuindo para pressionar a elevação nos salários, principalmente em períodos de maior atividade econômica, como no período entre 2004 e 2014. Nos países de setores industriais modernos, em tais situações, a solução tem sido a de elevar a produtividade do trabalho com o investimento intensivo de capital em pesquisas e processos de novas tecnologias. No entanto, no Brasil, o objetivo de se manter os lucros elevados se dá, preferencial e historicamente, pelo uso extensivo e intensivo da força de trabalho com baixíssimos salários.
Assim, na perspectiva de a oferta de trabalho tender se reduzir, o setor produtivo tem procurado artifícios no sentido de aumentar a população em idade ativa, ou seja, recuar a idade de entrada na atividade laboral e elevar a sua saída no caso de aposentação. Bem como se procura encontrar formas de baratear o custo da força de trabalho, com a flexibilização do mercado de trabalho em padrões recomendados pelo Fundo Monetário Internacional.
O debate sobre a diminuição de idade ativa assumiu, todavia, a pauta exclusiva como uma questão de diminuição da maioridade penal e se desenvolve em termos de benevolências, sociológicos, ético-legais, e do direito-comparativo. Entretanto, a quebra do Art. 227 da Constituição e, por conseguinte, da lei nº. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) não esbarra apenas em tais abordagens, vez que transcende a justificação, punibilidade à parcela de jovens brasileiros com idades de 16 a 18 anos, provocará alterações na relação da população em idade ativa e a população total (PIA/POP).
De fato, o que se busca é atenuar os resultados da relação capital-trabalho decorrentes dos impactos da queda da taxa de crescimento da POP sobre o relativo e tendencial aumento da participação do trabalho no excedente. Na medida em que — ou se encaminha para tal — retira do Estado a obrigação de interceder, através de segmentos jurisdicionais específicos e dos Conselhos Tutelares, na intermediação dos direitos dos jovens entre 16 e 18 anos, nas suas relações com a sociedade e, evidentemente, junto ao setor produtivo. As consequências dessa iniciativa são de ordem pessoal para o jovem nessa faixa de idade, que, se assim lhe for imposto, não conseguirá ainda ter uma formação educacional ou técnica capaz de conseguir emprego em melhores condições de remuneração e de função.
Pelo contrário, se assim posto, o jovem e irá engrossar as fileiras de trabalhos braçais, sujeitando-se a toda sorte de adversidades pronunciadas em baixos salários, maior concorrência no emprego, desestímulo à realização profissional e pessoal, entre outros. Sem perspectivas, os sonhos próprios dos jovens se desvanecem nas rotinas enfastiantes do trabalho rotineiro e uso extensivo da sua força de trabalho nos processos produtivos, podendo custar-lhe as suas chances de emprego, principalmente num mundo neoliberal no qual a concorrência tem o papel aliciante no individualismo. No plano macroeconômico, tal realidade significa, no médio e no longo prazo, que o trabalho no Brasil tenderá a perder a capacidade de contribuir para o desenvolvimento de segmentos industriais com tecnologias avançadas.
A solução definitiva sobre a dilação da idade para aposentação está embutida no debate sobre a privatização da previdência social geral. Certamente, trata-se de assunto aguardando momentos políticos mais favoráveis determinados pelo enfraquecimento dos sindicatos e movimentos sociais que poderão vir com a desaceleração da economia promovida pelo ajuste fiscal do atual governo, na medida em que tal iniciativa irá provocar desemprego e queda na parte do trabalho nos resultados da economia, crescimento defasado de salários e queda nos investimentos e custeios das políticas sociais. Inclusive, prenunciando, com o aperto no seguro desemprego e de pensão por morte, que não está longe de ser colocada na pauta do Congresso a alternativa de privatização da previdência social geral. Porquanto, tais medidas não trazem benefícios macroeconômicos de curto prazo, conforme deseja o governo, mas corrobora os interesses privados na privatização da previdência.
Assunto que não é propriamente um tabu, visto que, em diversas oportunidades, líderes sindicais, representantes do governo e agentes financeiros já se posicionaram sobre a criação e funcionamento de instituições previdenciárias fechadas voltadas para os trabalhadores em geral, o que, de fato, constitui-se um passo para a privatização. Embora ainda não tenha sido concretizada graças aos alertas de que serão necessários investimentos iniciais elevados por parte das empresas e do governo. O posicionamento do governo, sobre esta questão, demonstrou-se dúbio no sentido em que demonstrara interesse em desonerar a folha de pagamento das empresas cortando os custos previdenciários, tomados, então, como prejudiciais à competitividade de produtos brasileiros no mercado internacional, com acenos de fazê-lo através da criação do fundo de pensão para os trabalhadores, mas recuara diante do montante de recursos necessários como contrapartida.
Os bancos e a Bolsa de Valores do Estado de São Paulo — Bovespa, contudo, estão de olho no Fundo de Amparo ao Trabalhador — FAT, um montante respeitável de dinheiro, e não perdem a oportunidade de articulações no sentido de convencer o governo a transferir tais recursos para um fundo de pensão a ser criado para os trabalhadores em geral, o que, na prática, seria o salto estratégico em direção à privatização da previdência social. De qualquer forma, o governo teria que pôr outro tanto de recursos financeiros no fundo a ser criado, haja vista os recursos do FAT serem um patrimônio dos trabalhadores. Porém, com tantos jabutis no coqueiro do Congresso Nacional, representando medidas contrárias aos interesses dos trabalhadores com desrespeito à Constituição, que não é difícil imaginar que uma hora ou outra se encontrem uma fórmula para que isto ocorra. Vale lembrar que as alterações de aplicações do fator previdenciário, recentemente aprovadas, em nada irão influenciar os interesses dos bancos na administração de tais fundos de pensão. Afinal, como se verifica em diversos países — o Chile é um exemplo — a lucratividade das administradoras de fundos de pensão termina por ser determinada por elas próprias, através de cálculos cabalísticos de uma matemática fundada no breviário enredador neoliberal.
As questões acima pontificadas se completam com a terceirização do contrato de trabalho reproduzindo a afirmação do processo de primarização da economia brasileira que se inicia nos anos noventa do século passado, a partir da implantação da economia neoliberal. Haja vista a crescente terceirização na indústria de mineração, que hoje se aproxima de algo próximo a 60% dos empregos com carteira assinada. Igualmente ao que poderá ocorrer com a instalação de empresas industriais maquiadoras, que, do mesmo modo que ocorre no México e no Chile poderão chegar a ter total liberdade para controlar as relações com o trabalho, além de não pagarem imposto. Sobre essa última questão, o exemplo vem da mineração, porquanto tal setor tem isenção praticamente total de impostos na exportação. Com o disparato de a exportação de ouro, como se sabe, um minério da mais elevada liquidez, recebe, juntamente com o nióbio, do qual o Brasil possui 99% das reservas mundiais, incentivos fiscais para exploração e exportação, ou seja, não pagam IPI, ICMS, reduções no IR, e reembolso do CONFINS com cálculo presumível.
Deste modo, conclui-se que as forças populares conseguiram sim cortar as cabeças da hidra conservadora, mas se esqueceram de cauterizar os cortes, e elas nasceram mais venenosas e enfurecidas. Os sindicatos e os movimentos terão, agora, que despender força hercúlea para expô-la à luz do sol e fazê-la encolher como pó com o seu individualismo e entreguismo.
*Economista, ex-professor da PUCMINAS e da UFMG, Pesquisador Associado do CEDEPLAR/UFMG