Perto da Paulista, palco de novo ato anti-Dilma, jornada debate momento político e alternativas. E manifesta preocupação com medidas como redução da maioridade penal e ampliação da terceirização.
A apenas três quarteirões da avenida Paulista, centro financeiro de São Paulo, onde se concentravam movimentos que em comum tinham o sentimento anti-Dilma, algumas centenas de pessoas passaram o dia de ontem (12) discutindo o momento político e econômico do Brasil, os limites das transformações sociais dos últimos anos, o papel dos meios de comunicação e a importância da cidadania para o desenvolvimento.
O encontro, denominado Jornada pela Democracia, realizado na sede de coletivos em uma rua no bairro da Bela Vista, o Bexiga, contrastava com o ato da Paulista pelo clima predominante: em vez de faixas e palavras de ordem agressivas, mesas se revezavam para, mesmo criticando o governo, tentar refletir sobre a conjuntura, os erros do Executivo e perspectivas diante de um clima de beligerância instaurado pelo país.
A Rádio Brasil Atual e a TVT transmitiram todos os debates ao vivo, em cerca de 12 horas de trabalhos ininterruptos.
Um diagnóstico em comum aos participantes e presentes: o risco do avanço da pauta conservadora em detrimento de direitos sociais. Situação que se traduz em medidas como o avanço da proposta de redução da maioridade penal, a aprovação na Câmara de um projeto de lei sobre terceirização e o debate sobre o Estatuto de Família.
Participante de uma mesa que tinha como tema o conservadorismo, a psicanalista Maria Rita Kehl, se diz preocupada, por exemplo, com o que chama de falta de politização na sociedade. “É mais grave que ser direita, porque existe uma direita que joga limpo. O eleitorado não é politizado”, diz. Para ela, há uma “insatisfação vaga” que acaba se concentrada na figura da presidenta da República.
Há uma situação que, segundo Maria Rita, tem a ver também ao papel da televisão, “que domesticou a sociedade brasileira”. Na época da ditadura, aconteceu “uma simpática adesão” não propriamente ao regime autoritário, mas à imagem de Brasil moderno que se tentava transmitir, com reuniões de executivos da Globo na Escola Superior de Guerra. No momento atual, ela não acredita que se defenderia a volta da ditadura, mas ao mesmo tempo deveria haver mais responsabilidade quanto ao tipo de informação que se divulga.
Ela também se diz decepcionada com as denúncias de corrupção que envolvem o PT, mas identifica também um aspecto positivo: “A apuração que está havendo hoje é um avanço enorme para o país”. Ao mesmo tempo em que lembra que a corrupção não foi “inventada/’ agora nem é obra de um só partido, Maria Rita se mostra espantada com a “percepção” de que não havia corrupção na ditadura.
‘Indecente’
Laerte Coutinho, cartunista, aponta a necessidade de ampliar o discurso. “Estamos falando muito para nós mesmos. Por um lado é legal, por saber que não estamos sozinhos, mas precisamos falar com os outros também.” E critica meios de comunicações, citando o jornal Folha de S. Paulo e a revista Veja, por dar apoio a movimentos contra o governo. “É indecente.” Isso remete a outra questão, acrescenta. “De novo a discussão da regulamentação (da mídia) está escanteada”, observa Laerte.
A jornalista e pesquisadora Rosane Borges lembra da violência policial, citando casos como a da recente chacina de 12 jovens na Bahia, que teve pouca repercussão. “A gente volta à questão do Je suis (referência ao ataque ao jornal francês Charlie Hebdo, que matou 12 pessoas em janeiro). Ninguém é os 12 jovens de Salvador. A tragédia social que a violência policial vem provocando é uma política de Estado”, afirma. “Isso deveria nos comover. A gente tem de pensar em que projeto de nação queremos. O que está em jogo também é uma política de costumes, a república, a coisa pública.”
É uma questão de estabelecer um marco civilizatório, diz Rosane. “O que está em jogo é qual o pacto de civilização que a gente quer. Não ultrapassar a barreira da barbárie é um bom termômetro.” Sobre a recente medida em debate no Congresso, questionou: “O que é a redução da maioridade senão um golpe contra a juventude negra?”.
Enquanto o debate ocorria, a aproximadamente um quilômetro dali, manifestantes da Paulista voltavam a tirar fotos da e com a Tropa de Choque da Policia Militar, a exemplo do que ocorreu no ato de 15 de março.
Revisão de erros
O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) lembra que houve em outubro uma eleição “equilibrada e polarizada”, e agora o conservadorismo “tomou conta” de um dos poderes, referência à eleição de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para a presidência da Câmara. “Eles colocaram na agenda uma escalada contra os direitos sociais. Esse é o grande perigo que estamos vivendo”, afirma, citando temas como maioridade penal, Estatuto da Família, terceirização e conceito de trabalho escravo. “A sociedade brasileira tem de se manifestar”, diz o parlamentar, considerando correto recente avaliação do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos: “O centro político está sendo homogeneizado pela direita”.
Para ele, houve erros também durante a campanha eleitoral. “Nós baixamos a guarda. Ouvi de um importante dirigente que o Muda Mais não era importante. Temos de fazer uma revisão dos nossos erros. Acho que a montagem do ministério não foi boa”, disse Teixeira, arrancando aplausos. Ele também criticou a edição, no final do ano, das duas medidas provisórias que dificultam acesso a direitos trabalhistas e previdenciários. “O governo precisa reorganizar sua base. Não vai ter uma reforma política neste contexto.”
Ele identifica algumas questões prioritárias: o fim do financiamento empresarial em campanhas eleitorais, a luta contra a redução da maioridade e a resistência contra o Projeto de Lei 4.330, sobre terceirização. “Não podemos deixar passar esse projeto. Vai tirar massa salarial, ganhos dos trabalhadores.” E defendeu “pautas positivas”, como a implementação de um imposto sobre grandes fortunas e uma reforma tributária.
Analista político da Rede Brasil Atual, o ex-ministro Paulo Vannuchi considera que é preciso enfrentar a “retomada conservadora” e simultaneamente fazer “um profundo balanço dos nossos erros”, incluindo governo, partidos e movimentos sociais. O maior deles, avalia, talvez tenha sido não mexer na questão da democratização dos meios de comunicação.
A uma observação feita por Laerte (“A gente tem de esquecer que é esquerda, somos povo”, no sentido de ampliar a participação social, Vannuchi disse concordar em parte. E citou o pensador italiano Norberto Bobbio: depois da queda do Muro de Berlim, a esquerda se identifica com quem prioriza ideias de igualdade e união, enquanto a direita, está ligada ao discurso de eficiência e mercados.
Ainda na questão da maioridade, Maria Rita Kehl observou que é uma questão que “tem a ver com pensar no Brasil como ‘nós’ e ‘eles'”. Segundo ela, é preciso pensar que as crianças são uma responsabilidade de todos. “Pelo menos as crianças deveriam ser responsabilidade nossa. Não tem uma passeata pedindo melhores escolas, creches. Quem vota a favor (da redução) é muito mais uma política de vingança do que de justiça.”
Os debates no sobrado da Bela Vista, transmitidos pela TVT, começaram pela manhã e foram até a noite deste domingo.
Fonte: Rede Brasil Atual