Somos todos Charlie?

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O terrível atentado contra o semanário francês Charlie Hebdo no último dia 07, em Paris, continua sendo tema recorrente nas mídias em todo o mundo e gerou um caloroso debate nas redes sociais sobre liberdade de expressão e os limites da imprensa. O tema ficou ainda mais quente, após a marcha do dia 11, que levou para as ruas de Paris mais de um milhão de pessoas, reunindo líderes políticos da Europa, Israel, Palestina e estados árabes.

Enquanto a população comovida exibia cartazes com a frase “Je suis Charlie” (eu sou Charlie), que rapidamente ocupou as redes sociais de todo o mundo, políticos conservadores, como a primeira ministra da Alemanha, Angela Merkel, e o premier de Israel, Benjamin Netanyahu, ocupavam lugar de destaque na poderosa comissão de frente que abriu a marcha. Figuras acidamente criticadas pelo próprio  Charlie Hebdo, cuja linha editorial é de esquerda, hipocritamente assumiram para si as dores das 17 vítimas dos atentados protagonizados pelos três extremistas islâmicos que foram depois executados pela polícia francesa.

Nas redes sociais, um novo movimento começou a questionar a espetacularização da mídia e a manipulação do atentado pela direita, que cresce a passos largos na Europa, com discursos e ações fascistas e racistas que aumentam ainda mais as desigualdades no continente que tem hoje mais de 8 milhões de imigrantes ilegais, 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados. Outras manifestações passaram, então, a repercutir nas redes sociais através de um novo bordão: “Je ne suis pas Charlie” (eu não sou Charlie).  Para ampliar o debate, a FUP selecionou algumas vozes que tentam explicar as contradições por trás desse importante movimento. 

Laerte – cartunista brasileiro

“Temos de entender o Charlie Hebdo dentro do contexto histórico. Os franceses começaram a fazer charge política na época da Comuna de Paris. Eles arriscaram tudo e nunca foi fácil. Foram decapitados, presos, exilados, sofreram o diabo. E a agressividade do trabalho deles nunca diminuiu. A França não só comporta como exige a presença de um humorismo desse tipo. No Brasil, a gente nunca produziu uma coisa assim”.

Michael Löwy – sociólogo francês

“Muito foi dito a respeito do atentado, mas acredito que o importante a destacar é que se trata de uma revista de esquerda, num contexto de direitização européia muito forte (…) O crime é absurdo, mas é igualmente absurdo atribuir a responsabilidade a milhões de mulçumanos que vivem sua religião pacífica e tranquilamente. É uma armadilha – e precisamos lutar para que o mundo não caia nela. Se o presente nos indigna, o futuro nos preocupa”.

Leonardo Boff – teólogo brasileiro

“Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita (…) Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a Islamofobia (…) Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas (…) Bater na população islâmica da França é covarde. É bater no mais fraco. (…)  Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro de ontem (07/01), eu não sou Charlie”.

Alexandra Loras, consulesa da França em São Paulo

“Acho muito triste que tenham morrido personalidades conhecidas. Mas me entristece também a explosão de um carro bomba que matou 37 pessoas no Iêmen, em um atentado do mesmo grupo da Al-Qaeda, quatro dias antes do de Paris. Por que ninguém falou mais disso? As vidas do Charb e do Wolinski valem mais?Há um lado da história da França muito obscuro, que ela não quer assumir.A pátria mãe francesa parece ter esquecido os 400 anos de escravidão e 300 de colonização. A França ainda não se desculpou pela dores imensas que causou na África. Precisa se aceitar como sociedade multicultural e multirracial. E hoje ela não quer assumir esses filhos. Eu me coloco entre eles. Nos sentimos rejeitados. E me refiro aos africanos, aos árabes, aos asiáticos e aos judeus também. A todas as minorias”.

Latuff – cartunista brasileiro

“Em que pese que sou contrário às charges de Maomé e às constantes provocações ao mundo islâmico promovidas pelo jornal Charlie Hebdo, não posso concordar com o fuzilamento de jornalistas e chargistas. Esse tipo de ação só favorece ao discurso anti-islâmico e anti-imigração, cada vez mais forte na Europa. Eles (os islamofóbicos) têm agora uma oportunidade de ouro para atacar os muçulmanos por muito tempo”.

O silêncio diante de dois mil mortos na Nigéria

Enquanto os holofotes da imprensa se voltam comovidos para a França, a população da Nigéria segue às margens dos noticiários, que pouco ou nada repercutiram sobre o último atentado do grupo de radicais islâmicos Boko Haram, que desde o último dia 03 dizimou milhares de pessoas na cidade de Baga e arredores. Segundo a Anistia Internacional, foi o maior e mais mortal ataque do grupo, que pode beirar doismil mortos, a maioria mulheres e crianças. As ações do Boko Haram no país já duram cinco anos e mataram mais de 15 mil pessoas. Cerca de um milhão de pessoas estão deslocadas, dentro da Nigéria, e centenas de milhares fugiram pelas fronteiras com Chade e Camarões.

Fonte: FUP