A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos quer “herdar” poderes da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo mandato expira em dezembro. Assim, terá mais condições de continuar investigando as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado brasileiro durante a ditadura – tantas que dois anos e meio não foram suficientes para que os membros da CNV, nomeados em 2012, concluíssem o trabalho.
Criada por lei federal em 1995, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e atualmente vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos também deseja que o país comece a investigar vítimas de execução e ocultação de cadáveres cometidas pelas forças policiais do país após a redemocratização, ou seja, entre 1988 e os dias atuais.
As ambições da Comissão Especial constam de uma carta de seis pontos com sugestões que gostaria de ver incluídas no relatório final da CNV, no capítulo destinado às “recomendações” para o Estado brasileiro. O texto será entregue aos comissionados na tarde de hoje (6). Entre as sugestões, o órgão pede ainda mudanças na legislação para ampliar o conceito de “vítimas do regime”, englobando pessoas que não participaram da resistência, mas, ainda assim, tiveram as vidas diretamente prejudicadas pela repressão, como os indígenas.
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que tem várias frentes de trabalho abertas no país, também reivindica maior infraestrutura e orçamento para realizar as tarefas; a criação de uma Secretaria Nacional de Justiça de Transição para “consolidar a democracia no Brasil”; e maior participação de familiares nos trabalhos de busca e identificação dos mortos e desaparecidos políticos do país.
Documento
“É preciso insistir que a arquitetura da segurança pública é legado da ditadura civil-militar”, diz o texto enviado à CNV. “Hoje em dia, as vítimas privilegiadas da violência de Estado não são militantes de organizações políticas, mas jovens negros e moradores de áreas periféricas. Ao abandono social a que está condenada a maioria desses jovens, soma-se o desamparo institucional de suas famílias, que não conseguem conhecer a verdade sobre o que ocorreu.”
De acordo com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a extensão das investigações para o período posterior a 1988 se sustenta pela vigência, ainda hoje, do uso sistemático da tortura para obtenção de informações, da ocultação de cadáveres e dos índices “assustadores” de execuções sumárias encobertos pelos “autos de resistência seguida de morte.”
“A continuidade da violência de Estado por meio da manutenção de estruturas repressivas herdadas da ditadura civil-militar impõe a criação de uma comissão especial sobre mortos e desaparecidos do período democrático”, sugere o documento.
Quanto aos poderes da CNV, a Comissão Especial quer absorvê-los para acessar todo tipo de informação pública, inclusive documentos sigilosos; convocar qualquer pessoa para entrevistas e testemunhos; determinar realização de perícias e diligências; promover audiências públicas; requisitar proteção federal aos que colaborem com as investigações; e estabelecer parcerias com órgãos nacionais e internacionais para intercâmbio de informações.
“O encerramento do período legal das atividades da CNV não pode ser considerado, em hipótese alguma, o término do trabalho de apuração das violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura civil-militar brasileira”, argumenta o texto. “O relatório final da CNV deve fortalecer as frentes de trabalho já existentes, além de criar demandas, em razão da apresentação de novos fatos e testemunhos que, certamente, precisarão continuar a ser investigados.”
Razões
De acordo com Eugênia Gonzaga, procuradora da República em São Paulo e presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o grupo já devia ter sido criado com as prerrogativas que agora reivindica. “A experiência da CNV mostrou que esses poderes foram imprescindíveis para a condução dos trabalhos, que não terminaram e têm que prosseguir”, ressalta. “Para que possamos prosseguir, precisamos desses poderes.”
Antecipando críticas, Eugênia lembra que a Comissão Especial foi criada por lei. “Somos uma comissão de Estado, não de governo”, sublinha. “Podemos ser considerados a primeira comissão da verdade criada no país.” A procuradora lembra, porém, que o grupo possui infraestrutura tímida demais para as atividades que desempenha. “Não temos previsão orçamentária e nosso quadro é muito pequeno diante do trabalho que exercemos.”
A presidente da Comissão Especial argumenta que investigar os crimes cometidos pelo Estado durante a democracia é uma questão de manter padrões éticos nas instituições policiais. “Não que não haja ética, mas a certeza da impunidade faz com que abusos continuem acontecendo.” Eugênia lembra como o anúncio de que autoridades submeteriam a perícia os corpos de pessoas mortas pela PM de São Paulo, em 2006, após ataques do PCC, reduziu o número de vítimas. “Combater a possibilidade de desaparecer com as pessoas é uma necessidade importante.”
Fonte: Rede Brasil Atual