Pesquisadores, religiosos, juristas, artistas e ativistas se reuniram em evento virtual nesta quinta-feira (10)
[Do Brasil de Fato]
Em razão dos 72 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as organizações signatárias do Pacto pela Vida e pelo Brasil, iniciativa criada no início da pandemia do novo coronavírus, realizaram um evento virtual ao longo da manhã desta quinta (10).
Ainda que a atual conjuntura brasileira seja a de relativização e ataques a esses direitos, os representantes das entidades endossaram a luta cotidiana pela efetivação dos artigos previstos no instrumento criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948 e consagrados pela Constituição Federal de 1988.
Felipe Santa Cruz, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, participou da abertura do webinar mediado pelo jornalista Juca Kfouri e reforçou a importância da resistência aos ataques direcionados aos avanços civilizatórios das últimas décadas.
“É um quadro de grande instabilidade em que soluções autoritárias aparecem como saída para os grandes desafios sociais, políticos e ambientais. É preciso reafirmar que a saída é sempre mais democracia, mais direitos humanos, menos desigualdade e menos preconceito”, declarou.
“Os direitos humanos são a espinha da Constituição de 1988. Os ataques que se dirigem hoje a eles, são, na verdade, o caminho para a desumanização da sociedade e esgarçamento ainda maior do tecido social para a justificação da barbárie”, disse Santa Cruz.
Além da OAB, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) participaram da organização do evento que teve três mesas de discussões.
O ator Tony Ramos e outras personalidades leram, ao longo da conferência virtual, trechos dos artigos da Declaração Universal.
Direitos constitucionais
Segundo o renomado jurista Fábio Konder Comparato, que participou da primeira mesa do evento, o Brasil é um notório representante de descompasso entre o que está previsto no ornamento jurídico com a realidade.
“O respeito às normas de direitos humanos exige a instauração de uma política a longo prazo que vise reduzir drasticamente a desigualdade social. Esse objetivo supremo só será alcançado quando instaurarmos um regime verdadeiramente democrático e republicano, onde a soberania pertença efetivamente ao povo e não à minoria abastada da população, as oligarquias”, defendeu Comparato, integrante da Comissão Arns.
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Mito da democracia racial
Como exemplo da não efetivação dos artigos constitucionais, o jurista citou a destruição do meio ambiente intensificada sob o governo de Jair Bolsonar e os recorrentes episódios de racismo em todo país, um crime inafiançável, assim como os índices de violência contra a população negra.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram apresentados por Comparato durante o webinar. As informações escancaram o mito da democracia racial no Brasil: Em 2019, negros foram 79% das vítimas fatais da violência policial e correspondiam a 67% da população carceráriao.
José Vicente, reitor da Universidade Palmares e ativista do movimento negro, ressaltou que é preciso um esforço constante para frear o racismo institucional no Brasil. Ele frisou que a população negra, assim como antes da Declaração Universal e das leis que criminalizam o racismo, ainda não consegue acessar espaços públicos e privados de maneira igualitária.
Vicente relembrou, então, o assassinato de João Alberto Freitas, um homem negro que morreu após ser brutalmente espancado por seguranças em uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre. Ele acrescentou o próprio Estado ocupa o papel de transgressor racial.
“Vamos ver discursos racistas de toda natureza quando não ações objetivas se manifestando de uma maneira cristalina e propagada pela estrutura estatal a quem a Constituição determina como o anteparo de garantia desses direitos. E além do presidente e de seu vice, até a instituição constituída para defender tais direitos se volta para agredir, desconstituir e desumanizar conquistas”, disse, em referência à Fundação Palmares sob gestão de Sérgio Camargo.
Justamente para enfrentar esse contexto, Vicente sugeriu que defensores dos direitos humanos busquem inspirações nas grandes manifestações antirracistas recentes e nos movimentos que historicamente permitiram um salto civilizatório contra o racismo.
O educador trouxe como exemplo o boicote dos jogadores do Istanbul Basaksehir, da Turquia, e do Paris Saint-Germain, da França, que abandonaram o campo de jogo após uma ofensa racial do quarto árbitro a um integrante da comissão técnica, em jogo válido pela Liga dos Campeões da Europa, na última terça-feira (8) em Paris.
“A luta coletiva é o nosso copo meio cheio. Nos permite manter a esperança e reforçar a nossa certeza, estimula nossa luta para que ela continue sendo permanente. Para que leve para as próximas gerações um mundo em que todas as pessoas tenham a possibilidade da vida democrática indistintamente de sua cor ou raça”.
Participação social
Para a ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e jurista Deborah Duprat, que também esteve presente no webinar, o Brasil enfrenta “colonialidades que insistem em permanecer”.
Mais de 70 anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ela endossou que a resistência se concretiza pela noção de recuperar o Estado e todos os sentidos da Constituição de 88.
Ela prevê um delicado cenário nos próximos anos, tendo em vista que toda a administração pública formada por anos de gestão na área dos direitos humanos, com secretarias e instâncias voltadas às mulheres, ao meio ambiente, à infância e aos direitos indígenas, por exemplo, foram desarticuladas, limando a participação social.
“Tudo isso foi desmontado pelo governo Bolsonaro. Temos, na atualidade, servidores sofrendo com assédio institucional, sendo afastados das áreas de especialização e substituídos por militares. Temos espaços institucionais absolutamente comprometidos. Temos um ministro do Meio Ambiente que é contra o meio Ambiente. Um ministro da saúde que é contra a saúde”, criticou Duprat.
Liberdade de expressão
Integrantes da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), como o presidente Paulo Jerônimo, apresentaram dados alarmantes da violência recorrente contra jornalistas e profissionais da comunicação em plena democracia.
Conforme levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 2019 foram registrados 208 casos de violência contra a imprensa, somando episódios de descredibilização da imprensa e agressões diretas. O número é 54,07% maior do que o registrado no ano anterior.
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Sozinho, o presidente Jair Bolsonaro foi responsável por 114 casos de descredibilização da imprensa e outros sete casos de agressões verbais e ameaças diretas a jornalistas em 2018, totalizando 121 casos – o que corresponde a 58,17% do total.
Um estudo da Unesco divulgado em 2 de novembro, Dia Internacional pelo Fim da Impunidade dos Crimes contra Jornalistas, mostrou que 44 jornalistas brasileiros foram mortos entre 2006 e 2019. Desses, 32 casos permanecem sem desfecho.
Ativistas ameaçados
Além da não efetivação dos direitos humanos previstos na Declaração Universal e no ordenamento jurídico brasileiro, aqueles que atuam em defesa dessas garantias estão completamente desprotegidos por parte do Estado.
Essa é a constatação apresentada por dossiê lançado nesta semana pelo Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH). A terceira edição do documento contou com a participação de 42 organizações, movimentos populares e associações sistematizaram as violações de direitos de quem defende direitos humanos de 2018 a 2020;
O pesquisador da Justiça Global e também organizador do Dossiê, Antônio Neto, ressalta que o Programa Nacional de Proteção às Defensoras e Defensores de Direitos Humanos no Brasil (PNPDDH) instituído em 2004 e efetivado após assassinato da missionária Dorothy Stang, tem sofrido uma série de descontinuidades.
“O programa vem sofrendo um ataque muito forte por parte do governo. Não tem orçamento e nem estrutura para funcionamento justamente em um momento em que a violência contra os defensores é muito forte”, condena Neto.
Ele destaca que lideranças indígenas e os povos tradicionais são os mais atingidos.
De acordo com a ONG Global Witnes, em 2019 foram assassinados 24 defensores do meio ambiente no Brasil, dentre eles 10 indígenas, o que levou o país a ocupar o 4º lugar no ranking de nações mais violentas contra defensores de direitos humanos.
Neto explica que a escalada de violações se intensificou mesmo em meio à pandemia por meio da não demaração e invasão de territórios indígenas e quilombolas.
Os ativistas LGBTs também são grande alvo da violência e não possuem a proteção adequada do Estado. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) apontam que somente nos primeiros oito meses de 2020 os assassinatos de pessoas trans aumentaram 70% em comparação ao mesmo período do ano anterior, totalizando 129 assassinatos, incluindo lideranças.
Para Neto, porta-vozes do governo brasileiro, como o presidente Jair Bolsonaro, incitam e “legitimam” a violação desses direitos constitucionais.
“Nossa única perspectiva é a da resistência. Precisamos resistir a todos esses ataques que estão sendo implementados pelo governo e por sua base social que se sente autorizada a exercer a violência. Algo que os movimentos e organização sempre fizeram”, reforça.
O pesquisador diz ainda que durante o lançamento online do dossiê, a palavra mais usadas pelos movimentos e organizações foi “unidade”.
“É preciso organizar a luta, unificá-la, para a resistência seja cada vez mais forte para derrotarmos esse governo. Assim como a criação de mais mecanismos de proteção para colocar os defensores e defensoras na luta de maneira mais segura”.