'Por favor, nos escutem'. Um clamor que vem da Amazônia


Gustavo Pimentel, da ONG Amigos da Terra Amazônia Brasileira, fala sobre o leilão da usina de Jirau e sobre outras questões que cercam o complexo do Rio Madeira, além de refletir sobre a problemática que permeia a usina de Belo Monte. O ambientalista acredita que o episódio que levou uma índia a agredir um técnico da Eletrobrás durante um evento organizado pelos povos amazônicos para discutir essa obra foi um grito clamando para que os governantes e responsáveis pelas hidrelétricas ouça as reivindicações desses povos. “Foi um episódio radical de uma parcela dos índios que se exaltaram, mas representa bem toda a revolta e indignação de povos que vivem há mais de 20 anos com essa ameaça a seus modos de vida e que não têm sido ouvidos”, disse.

Confira a entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

O leilão da usina de Jirau foi realizado. A Suez, empresa que ganhou o leilão, quer mudar o projeto e deslocar nove quilômetros abaixo o ponto de instalação das turbinas. O Ibama diz que isso não é usual, e os índios e movimentos sociais são contra o projeto devido aos prejuízos que ele causará para quem depende do rio ou vive nas áreas que serão invadidas pelo projeto. E agora?

No caso das mudanças propostas pela Suez, existe uma discussão sobre a legalidade, não do ponto de vista ambiental, e sim do ponto de vista do edital do leilão, dentro do ministério das Minas e Energia e outras entidades. A meu ver, é pouco  usual algo nesse sentido, mas não é nossa especialidade discutir se isso se encaixa no leilão ou não. A outra empresa que disputava com a Suez deveria questionar a legalidade do leilão.

Do ponto de vista do licenciamento do ambiental, é algo realmente inédito. Nossa opinião é de que se trata de algo completamente ilegal o que a Suez pretende fazer, caso não sejam feitos novos estudos. Isso porque temos um licenciamento já falho e fraudável sobre duas localizações específicas para as usinas. Para piorar ainda mais, a Suez quer mudar o local, e a sociedade não tem a mínima noção sobre os impactos que isso terá. Eles alegam que os impactos são menores, mas precisam prová-los. O ônus da prova está com a Suez.

Realmente, trata-se de uma situação muito complicada. Essa questão mostra também que não são apenas os ambientalistas e movimentos sociais que estão causando problemas às obras, mas as próprias empresas interessadas já criam diversos problemas entre elas. As coisas já estão ruins e eles conseguem piorar ainda mais a situação. Fica, realmente, difícil de acreditar que esse empreendimento estará de pé no prazo em que é colocado, planejado, e que ele realmente possa contribuir para diminuir a insegurança energética do país.

Quais são os maiores prejuízos que as populações que dependem do Madeira sofrerão?

Em primeiro lugar, há a perda da qualidade da água, já que haverá o represamento dela, o que traz impactos já conhecidos nos peixes e na biodiversidade da chamada ictiofauna [1]. Por isso, muitas comunidades ribeirinhas e indígenas que dependem dos recursos do rio podem ter esses recursos comprometidos. Em segundo lugar, existe uma questão seríssima de saúde pública, relacionada ao mercúrio. Não se sabe exatamente quais serão os impactos, em termos de devolvimento, daquele mercúrio que está depositado no leito do rio devido a anos de garimpo. Isso pode contaminar de forma irrecuperável a água do rio e sua biodiversidade. A população de Porto Velho é também extremamente dependente da água do rio, tanto para saneamento, para abastecimento de água, quanto para alimentação. Esse impacto é notável.

E ainda há todos os impactos pelo fato de ser acelerado o crescimento econômico em uma região de grandes conflitos e de grande carência de infra-estrutura social. A migração que está sendo esperada para a região, toda a especulação imobiliária que já ocorre já está aumentando o preço dos imóveis – o que prejudica as populações mais carentes e acaba por expulsar as pessoas dos centros, levando-as à periferia –, trará, enfim, uma pressão para os serviços públicos de saúde. Isso também está acontecendo com a questão do desmatamento. Como há uma expectativa muito grande de crescimento econômico da região e a titulação fundiária da região é muito débil, teremos todo um incentivo para o aumento da grilagem, para a invasão de posseiro e a retirada irregular de madeira. Então, já percebemos um impacto determinante sobre o desmatamento da região. Todos esses impactos já estão muito bem documentados na mídia e em textos produzidos por especialistas independentes.

Há um impacto crucial. A grande questão do Rio Madeira é que nem todos os impactos são conhecidos e alguns conhecidos não são dimensionados, ou seja, não se sabe a sua magnitude. Então, um indício muito claro a respeito disso são os povos indígenas isolados. A poucos quilômetros de onde seria o canteiro de obras da usina de Santo Antônio, por exemplo, já se constatou a presença de inúmeros grupos indígenas que vivem no isolamento. Não se sabe qual impacto a obra poderia ter sobre eles, que não foram contatados e sequer consultados sobre a obra. Se você olhar as condicionantes da licença prévia, a questão dos impactos é muito interessante. Isso porque a licença prévia jogou para frente vários determinantes de viabilidade da obra e observou que deveriam ser feitos estudos para aprofundar essas questões. Só que esses estudos podem mostrar, lá na frente, que realmente a obra era inviável do ponto de vista socioambiental. Então, é uma coisa completamente absurda você dar uma licença nessas bases e causar tamanho risco jurídico e socioambiental até para os empreendedores que estão o tempo todo despendendo recursos e não têm certeza se no futuro irão conseguir realmente realizar as obras.

Qual será a conseqüência da construção do Complexo do Madeira para o povo brasileiro?

Uma conseqüência para a sociedade brasileira, já que estamos falando de um empreendimento no bioma amazônico – que é um marco de entrada de um modelo de exploração energética dos recursos da Amazônia e um modelo que não atende ao desenvolvimento regional –, é que esse impacto irá reverter em desmatamento da região, podendo trazer maiores problemas em termos de mudança climática. E isso só no complexo do Madeira. O efeito cumulativo acentua as mudanças climáticas regionais que estão ocorrendo na região. Sabemos que grande parte dos recursos hídricos do Sudeste e do Sul depende da Amazônia. Então, as usinas estarão reforçando um modelo que destrói a floresta. Em médio e longo prazo, isso trará prejuízos em termos de mudança climática e estoque de água para populações em outras regiões do país.

 Em relação à Belo Monte, para você, o que significou o episódio ocorrido entre o técnico da Eletronorte e os indígenas da região?

 Aquilo foi um grito de “por favor, nos escutem”, porque há 20 anos se vem tentando empurrar esse projeto “goela abaixo” da sociedade amazônica, dos ribeirinhos e dos povos indígenas da região, ou seja, de todos que vivem naquele espaço, que seriam diretamente impactados e nunca foram ouvidos. Então, é um episódio marcante, no sentido que você nunca ouve a população e, quando existe a oportunidade de diálogo, ela é criada não pelos empreendedores da obra, mas pela população que será atingida. A população convidou os empreendedores a dialogar. Eles enviaram um técnico completamente despreparado e muito agressivo, que colocou questões do tipo: “vocês, índios, são egoístas”, “vocês têm que aceitar esses impactos para que o resto da população do Brasil tenha energia” etc. Ele ainda tentou desmentir palestrantes anteriores que estavam no evento. Foi um episódio radical de uma parcela dos índios que se exaltaram, mas representa bem toda a revolta e indignação de povos que vivem há mais de 20 anos com essa ameaça a seus modos de vida e que não têm sido ouvidos.

 Então, segundo a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), para garantir energia para o Brasil será preciso avançar sobre a Amazônia ou investir em energia nuclear. Qual é a imagem que o Brasil passa internacionalmente sobre o seu posicionamento em relação à Amazônia?

 O Brasil vai na contramão de todo o mundo no que se refere à política energética. Todos os países mais desenvolvidos estão tentando limpar a sua matriz energética com fontes alternativas – sejam elas eólicas, solar, com pequenas centrais hidrelétricas, geotérmicas, energia das marés – e criando modelos que incentivam essas energias, já que as que existem hoje são mais caras. O Brasil faz o contrário, pois tem um grande potencial para eficiência energética. Para começar, todas as usinas existentes podem ser repotencializadas. Só isso geraria mais energia do que as duas usinas do Madeira, ou seja, você substitui os equipamentos antigos por novos, que possuem maior potencial de geração de energia. Podemos ter ganhos nas linhas de transmissão também. Elas estão muito ineficientes, e o próprio modelo que se constitui em fazer grandes empreendimentos de energia e depois carregá-la para o outro lado do país, onde será consumida, é completamente anacrônico e gera ineficiência na transmissão. Eu percebo que o Brasil está nessa contramão em virtude dos setores que ele busca atender com essa energia barata, justamente os setores intensivos de emissão de carbono que os países desenvolvidos não querem. Nós estamos intensificando a mineração, a siderurgia, a questão do alumínio. Todos esses setores são superintensivos em energia e, dessa forma, estamos nos inserindo no mercado globalizado. Olhamos o exemplo da China, que pegou as indústrias mais poluentes, colocou-as dentro do seu território, passando a exportar para o mundo inteiro, e agora sofre com problemas ambientais seríssimos e que irão comprometer o seu crescimento. O governo brasileiro está invejando o modelo chinês e quer fazê-lo funcionar aqui também. Isso serve apenas para manchar a imagem do Brasil internacionalmente e é prejudicial para a própria população brasileira, ou seja, não é apenas uma questão de imagem.

 Como esses casos deveriam ser conduzidos?

Sobre o Rio Madeira, o que nós vemos é que esse desrespeito existente em relação ao licenciamento ambiental e com a conivência do Ibama só joga contra os empreendedores e os setores do governo que querem aumentar a oferta de energia. É muito melhor ir mais devagar, mas fazendo tudo dentro da legalidade, do que tentar acelerar os processos, que, depois, estarão sujeitos a questionamentos na Justiça. Eu vejo que a estratégia adotada pelo governo e pelos empreendedores só gera maior risco econômico-financeiro para eles próprios.

Por que o povo brasileiro ainda não entendeu que precisa lutar junto com os índios?

Eu vejo que existe uma distância muito grande entre o povo brasileiro e os índios. Nós não sentimos o que os povos indígenas vivem no dia-a-dia. As pessoas da região, principalmente na região de Rondônia, descendem dos colonizadores vindos do Sul do país, que viviam e vivem num modelo cultural completamente diferente e querem imprimir esse mesmo modelo de sociedade na região amazônica, onde existem muitos povos indígenas tradicionais. O choque acaba sendo muito forte. Esse modelo imposto não combina com a Amazônia. A distância cultural acaba por fazer com que a população não apóie a causa dos índios.

O que muda com a saída de Marina e com a entrada de Minc em relação à Amazônia? Muda em termos de imagem internacional. O Minc não é reconhecido como um ambientalista defensor da Amazônia, apesar de ter, nesse início de trabalho no ministério, dado toda a atenção para essa questão. Me parece que ele tem um viés mais tecnicista, ou seja, quer olhar a questão das leis, seguindo à risca o que está escrito no papel, enquanto a Marina parecia ser uma pessoa com maior visão em termos de construção de política e institucionalidade. Agora, temos de pagar pra ver. Não há como dizer o que irá acontecer daqui para frente.