Resultado da eleição presidencial em El Salvador simboliza o fim de um pesadelo para o país

A eleição presidencial vencida esta semana em El Salvador pelo jornalista Mauricio Funes…

Agência Carta Maior

A eleição presidencial vencida esta semana em El Salvador pelo jornalista Mauricio Funes, candidato dos ex-guerrilheiros da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN), pode representar, simbolicamente, o fim há muito esperado de um pesadelo. A tragédia desse país e da América Central agravou-se em 1981-89, com o apoio do presidente Ronald Reagan a ditaduras sanguinárias.

O alegre ex-ator que chegou à Casa Branca graças à crise dos reféns do Irã é festejado hoje pelo Partido Republicano como herói e santo padroeiro. Mas sua escalada na ingerência dos EUA na guerra civil salvadorenha, com injeção de bilhões de dólares em ajuda militar, elevou a 80 mil as mortes em 12 anos de guerra civil – 95% do total, segundo estimativa da ONU, vítimas do próprio governo.

É preciso levar em conta, para avaliar melhor o significado desses dados, que El Salvador é o menor país da América Central (21 mil km2, menor do que o estado de Sergipe) e o único sem saída para o mar do Caribe. Mas tem população de 7 milhões de habitantes e fica espremido entre três muito maiores – Guatemala, Honduras e Nicarágua, na costa ocidental centro-americana, no Pacífico.

Os ideólogos conservadores do presidente Reagan, alguns dos quais (como Jeane Kirkpatrick e Eliott Abrams) seriam mais tarde englobados pela direita americana no neologismo neocon, concluiram na época que haveria naquele país uma espécie da batalha do Armagedon – as forças do bem (o Ocidente cristão e democrático) contra o império do mal (o comunismo ateu).

O entusiasmo do embaixador White
Como também acontecera logo no início da campanha de propaganda de John Kennedy e Lyndon Johnson para vender a guerra do Vietnã, Ronald Reagan publicou o que chamou de white paper, para justificar o envolvimento em El Salvador. No texto, deixava de lado a realidade social do país e definia a situação como “um caso didático de agressão armada indireta por potências comunistas através de Cuba”.

Pouco mais de um ano antes da eleição de Reagan, a ditadura da família Somoza, sustentada pelos EUA desde a década de 1930, ruíra na vizinha Nicarágua. E em outubro de 1979, em El Salvador, o general-presidente Carlos Humberto Romero, beneficiário de uma eleição fraudada em 1977, foi deposto num golpe que instalou uma Junta moderada, com quatro civis e um militar, e prometeu eleições.

A queda de Romero alimentava esperança. Estava na Casa Branca o presidente Jimmy Carter, que dava ênfase aos direitos humanos na política externa. Ele restabeleceu a ajuda militar “não letal” (suspensa em 1977) a El Salvador, enviou um pequeno grupo de assessores militares e nomeou um embaixador inquieto e dinâmico, talvez demais, Robert White.

Liberal bem intencionado, com idéias próprias e experiência razoável na América Latina, White apostou em José Napoleón Duarte, politico democrata-cristão que fora vítima da repressão militar e aceitou integrar a Junta e depois ser presidente. Via nele a receita certa contra a esquerda. Mas do lado militar destacava-se o chefe da espionagem Roberto D’Aubuisson, major treinado na School of the Americas – a “escola de ditadores” do Exército dos EUA.

Um assassino patológico em ação
A relevância do papel de D’Aubuisson, que o embaixador White chamaria depois de “assassino patológico”, seria melhor avaliada a partir da execução em março de 1980, em plena missa, do arcebispo Oscar Romero, crítico da repressão militar. O major era o principal suspeito mas só anos depois seria comprovado que a matança na catedral fora perpetrado por um dos esquadrões da morte e grupos paramilitares criados por ele.

Fora do serviço militar ativo, D’Aubuisson manteve dupla atuação – a ostensiva, legal; e a oculta, ilegal. Em 1981 fundou seu partido de ultradireita, a Arena (Aliança Republicana Nacionalista), que acabaria por controlar o poder até a derrota de 2009. D’Aubuisson, que também parecia anti-semita e simpático a Hitler, dizia abertamente – como registrou o Washington Post em agosto de 1981 – que “só matando umas 300 mil pessoas haverá paz em El Salvador”.

Além de ver comunistas debaixo da cama, costumava vê-los até na residência do embaixador dos EUA. Preso por poucos dias em 1980, acusado de conspirar para derrubar o governo com um golpe, mandou seguidores protestarem em frente à casa de Robert White, gritando insultos e exibindo cartazes que exigiam a saída do embaixador: “White comunista! Fora de El Salvador! Vá para Cuba!”

Nos EUA, Reagan pode ter acreditado. Dez dias depois de sua posse, em janeiro de 1981, o novo presidente anunciou sua primeira decisão de política externa: a demissão sumária do embaixador White. Sequer houve surpresa: a campanha de Reagan parecia enviar a cada dia um novo alento à direita militar em diferentes pontos do continente – especialmente a de El Salvador, onde a violência aumentava com fatos assustadores.

Haig e as freiras que não rezavam
No fim de junho, soldados invadiram a Universidade Nacional (depois fechada) e mataram mais de 50 pessoas. Eleito Reagan em novembro, cinco dirigentes da FDR, aliada da FMLN, foram torturados e mortos. Em dezembro, soldados estupraram, mataram e enterraram quatro religiosas americanas que faziam trabalho social. “Rezando elas não estavam”, diria depois o leviano Alexander Haig, secretário de Estado de Reagan.

Ainda como presidente-eleito, Reagan e assessores como Kirkpatrick receberam homens de negócios de El Salvador, aos quais ele garantiu que ia aumentar a ajuda militar dos EUA. Pralelamente, Kirkpatrick e Vernon Walters viajariam a vários países, inclusive a Argentina dos generais (e dos "desaparecidos") e o Chile de Pinochet, para assegurar que direitos humanos já não frequentavam a pauta da política externa dos EUA.

O efeito da mudança de governo foi dramático. Um ano depois da posse de Reagan o New York Times e o Washington Post revelaram mais massacres de camponeses, atribuídos aos militares. No maior, de El Mozote, mais de 100 foram mortos e enterrados. E em reportagem de capa, Newsweek devassaria no início de novembro de 1982 a guerra secreta dos EUA contra a Nicarágua na fronteira de Honduras.

O pesadelo de El Salvador devia ter terminado em 1992. Nesse ano D’Aubuisson morreu de câncer e foram assinados os Acordos de Paz mediados pela ONU, que instalou a Comissão da Verdade para investigar massacres, assassinatos e tortura. Mas faltava derrotar o partido do criador de esquadrões da morte. Até porque o sonho de D’Aubuisson era matar pelo menos mais 300 mil salvadorenhos.