Ascensão do bolsonarismo e os rumos do campo progressista

 

Por Rodrigo Pimentel, diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)

Independente dos resultados do segundo turno das eleições, a nova bancada de deputados, senadores e governadores expõe uma nova configuração da política nacional marcada pela ascensão de novas forças políticas e rupturas de antigas estruturas de poder materializada na destruição da “velha direita democrática”, aquela formada após a Constituição de 1988, e numa crescente fragmentação do campo progressista, sem que isso significasse uma ampliação relevante da sua representação no campo institucional.

Para essa nova força, os partidos são apenas mera formalidade para a disputa política, sua ferramenta de representação está na massificação das redes sociais. E aqui se caracteriza uma primeira diferença importante entre essa nova direita e as velhas forças políticas, sejam elas de direita ou esquerda.

A nova direita opta por um caminho de comunicação aparentemente excêntrico porém não desconhecido: por um lado, inicia uma espécie de ataque sistêmico aos meios de comunicação tradicionais de massa associado à direita e às novas formas de comunicação criadas pelo campo progressista, jogando todos num mesmo balaio: parciais, ideológicos e imorais. Por outro lado, aproveitando-se da velocidade e da capilaridade das redes sociais, cria um instrumento próprio de comunicação, extremamente despolitizado, personalizado, de fácil entendimento e mais raivoso.

Essa forma de comunicação permite a ascensão da nova direita, principalmente do bolsonarismo, impulsionando sua base a partir de dois mantras; i) o discurso de ódio contra tudo que está associado à velha política e; ii) a associação do caos político, social e econômico do país à ruptura de determinados padrões culturais.

Essa narrativa ganha ainda mais aderência com a devassa à política tradicional provocada pela forma de combate à corrupção da Lava-Jato. Como adverte Reinaldo Azevedo, em sua coluna na Folha de São Paulo, em agosto de 2018, “os populismos que nos ameaçam são a consequência do processo de destruição da política a que passaram a se dedicar o MPF, a PF e setores do Judiciário”. O vácuo politico, por sua vez, é rapidamente ocupado pela narrativa do “novo” e do apelo a moralidade bolsonarista.

Um segundo aspecto conectado ao bolsonarismo é a construção de uma nova base social, bastante fragmentada, heterogênea e recheada de contradições. Com o advento das redes sociais ela não precisa ser coesa socialmente, pelo contrário. A grande chave agora é a criação de um laço alimentado pelo discurso simplório, tosco, aparentemente honesto, desconexo entre si, mas que deve ser capaz de fazer a mensagem chegar a um número crescente de pessoas. Alguns exemplos:

i) A ignorância e a raiva para tratar de assuntos econômicos, educacionais e de saúde não são vistas mais como despreparo, mas sim como um atributo de transparência, indignação e honestidade, de um político que não quer enganar o eleitor;

ii) A crise educacional do país é uma questão moral e ideológica: primeiro de conteúdo, tais como ideologia de gênero, discussões filosóficas, que estaria desviando o foco do ensino e, segundo, de ausência de disciplina e desrespeito ao professor. A solução é alterar a diretriz de conteúdo e aumentar a rigidez nas escolas.

iii) A solução para a violência é armar o cidadão de bem, assim, como há um número maior de cidadãos de bem do que maus cidadãos, haveria uma espécie de extermínio natural dos maus cidadãos, os marginalizados.

Ao unir esses três discursos, o bolsonarismo consegue se conectar de forma rápida à parte da elite antilulista que julga a corrupção como o maior mal do país, aos professores cansados de mau tratamento nas escolas, à parcela mais pobre e religiosa da população defensora de hábitos bastante conservadores e, por fim, à população amedrontada pela violência. A novidade aqui é que não há pautas amplas e coletivas, mas sim pontuais e bastante individualizadas.

Um terceiro aspecto importante diz respeito a estrutura econômica e financeira que sustenta a formação do bolsonarismo. Saem de cena os grandes conglomerados financeiros e os grupos empresarias industriais, típicos financiadores de campanha da velha direita e esquerda e, entram no seu lugar, os grandes grupos de comércio de varejo nacional e o empresariado evangélico. Há uma forte identidade de classe, discursos e valores entre os empresários e o bolsonarismo.

Dessa forma, rompe-se o padrão de relação direta de financiamento que passa a ser substituída por uma nova forma indireta. Isto é, os recursos não são mais direcionados à campanha, mas diretamente ao eleitor, utilizando a forte capilaridade dessas empresas e igrejas que detém um poder avassalador sobre os seus funcionários e fieis. Aqui não há problemas em gerar constrangimentos, violência, afinal esses são dois dos valores compartilhados pelo líder político e seu financiador.

A desindustrialização observada desde o governo FHC, a profunda liberalização econômica e a retomada do crescimento do consumo também traz impactos fundamentais ao tecido social contemporâneo: desorganiza a base historicamente associada aos partidos progressistas e da velha direita. Em substituição, expande-se, parafraseando Marx, um exército de reserva de mão de obra, por um lado, e uma demanda gigantesca fruto da expansão extraordinária do consumo desde o governo FHC, por outro. Com isso, grandes marcas como Americanas, Havan se expandem, criam uma rede extensa de consumidores e constituem uma base imensa e capilarizada de trabalhadores pelo país; esta bastante abandonada pelas estruturas tradicionais de representação política e sindical. Isso sem contar que, no cenário de caos político, moral e econômico, há um aprofundamento da relação da população mais vulnerável com os grandes espaços religiosos.

Enfim, o bolsonarismo atende aos anseios da sociedade ao oferecer algo aparentemente novo e aqui exige um cuidado fundamental: o novo não é na figura, mas na forma. A forma de comunicar, de tratar dos problemas e achar soluções. As mensagens são simples, palatáveis, os problemas são de culpa de todos que estiveram e estão por aí, bem como as soluções residem na mudança da “velha forma” de fazer política. Com todas as reservas, é isso que Mao Tse Tung fez na China nos anos 1930 para se consolidar como uma alternativa ao poder imperial. Esse exemplo é fundamental para entender que, nesse fenômeno, o espectro ideológico da inovação não é decisivo.

Além disso, esse novo representado pelo bolsonarismo possui uma forte conexão com os valores tradicionais da nossa sociedade, aqueles da Senzala e não da Casa Grande. O bolsonarismo presta um tipo de solidariedade ao resgate desses valores que, nessa perspectiva, são fundamentais para enfrentar a crise moral vivida no país.

Enquanto isso, o campo progressista disputa os valores da Casa Grande, digladiando com a velha direita sobre os responsáveis da crise econômica e do desastre social, sem compreender que todas as forças politicas tradicionais seriam culpabilizadas. E, mais grave: como solução apresenta a alternativa – fracassada, diga-se de passagem – da união do “velho” assentada em forças políticas do lulismo, em menor escala, do brizolismo, e com candidatos exaustivamente conectados ao passado. Coloca-se aqui um dilema: precisa-se do lulismo, mas também sua transição é urgente. O que fazer?

Essa é tarefa para o médio e longo prazo, no curto isso significa perguntar se a frente progressista tem capacidade de trazer algo novo em relação ao bolsonarismo nos próximos vinte dias? A missão é hercúlea e a capacidade de alcançar sucesso é mais difícil ainda. No entanto, a chance de êxito depende da compreensão das reais demandas do povo e de uma nova forma de se comunicar a ele, sempre lembrando do sinal já dado no primeiro turno: somente a união do velho não é mais suficiente, a menos que consiga-se associar o bolsonarismo ao que há de mais retrógrado na política.

Do passado, ficam apenas a necessidade de voltar aos escritos de Gilberto Freyre, de compreender melhor a história da ascensão maoísta (e de outras novas lideranças que surgiram em diferentes momentos) e, principalmente, de tirar lições de como se conectar com a alma do povo mais sofrido do país. Essa última tarefa, um certo partido brasileiro foi capaz de fazer com rara maestria há cerca de quarenta anos atrás.

[Via Le Monde Diplomatique Brasil]