A assessora técnica da CNQ fala sobre a importância da criação de uma regulamentação que proteja o trabalhador terceirizado







 Desde 1998, está em curso no Brasil um processo de desregulamentação da legislação trabalhista e, embora tenha triplicado a criação de novos postos de trabalho nos últimos dez anos, o processo de terceirização continua o mesmo “de vinte anos atrás”, critica a economista Marilane Teixeira, em entrevista concedida à IHU On-Line. “Em 20 anos, não se conseguiu criar uma regulamentação que discuta a terceirização. Isso é um absurdo, considerando-se que temos um governo de esquerda”, lamenta. De acordo com ela, o Brasil é um dos únicos países da América Latina que ainda não possui uma regulamentação para proteger o trabalhador terceirizado.

A alta rotatividade no mercado de trabalho gerada pela terceirização tem afetado a classe trabalhadora, ampliando a precarização em todos os setores e dificultando a articulação dos funcionários por melhores condições de trabalho. “Quando existem, no mesmo local de trabalho, várias empresas prestando serviços, e vários sindicatos representando as diversas categorias profissionais, a noção de identidade de classe trabalhadora pertencente a uma classe com os mesmos objetivos se dilui, porque cada trabalhador vai negociar a sua dinâmica com os seus sindicatos”, aponta.

Favorável à regulamentação da terceirização, Marilane Teixeira menciona que dois projetos de lei tramitam no Congresso Nacional e um deles tem o apoio das centrais sindicais, mas está parado há dois anos na Casa Civil. Na entrevista a seguir, ela explica quais fatores são indispensáveis no processo de regulamentação da terceirização no país.

Marilane Teixeira é formada em Economia pela Unisinos, mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Atualmente cursa doutorado em Economia Social na Universidade de Campinas – Unicamp e atua como assessora técnica da Confederação Nacional do Ramo Químico – CNQ.

Confira a entrevista.

Qual é o histórico da terceirização no Brasil? Como e por que esse processo ganhou força entre as empresas brasileiras?

A terceirização no Brasil é um processo antigo, que teve início com a crise dos anos 1970 e 1980. Nessa época as empresas eram muito verticalizadas, mas, em decorrência da própria crise e da necessidade de monitorar e reduzir custos, houve um processo de desverticalização. A partir daí começou uma discussão sobre as mudanças dos processos tecnológicos e organizacionais nas empresas, que passaram a focalizar o processo produtivo nas atividades mais importantes.

No início de 1990, com o processo de reestruturação e abertura comercial, com advento das políticas neoliberais, as empresas começaram a desenvolver o que chamamos de estratégia defensiva. Em vez de elas investirem na introdução de novas tecnologias e na capacitação profissional para competir com os importados que estavam entrando no país, optaram por realizar mudanças organizacionais que implicaram, além da redução de custos, na ampliação da terceirização.

No início dos anos 1990, a indústria brasileira já havia terceirizado boa parte das atividades de dentro do fluxo de produção. Por isso hoje a prática da terceirização está bastante vinculada às grandes empresas, principalmente às exportadoras, porque elas consideram a terceirização um fator importante para manter a competitividade da indústria. As empresas de celulose e papel atuantes no Brasil, por exemplo, são donas das áreas de plantio, mas terceirizam a plantação para outras empresas.

A CUT entregou um dossiê ao Tribunal Superior do Trabalho – TST, dizendo que a terceirização impede a geração de mais vagas de trabalho, impõe salários mais baixos e aumenta o número de acidentes de trabalho. Como vocês chegaram a essas conclusões?

O dossiê foi entregue apenas pela CUT porque há divergências entre as centrais sindicais em relação às implicações da terceirização. Nós fizemos um dossiê e o divulgamos amplamente nas vésperas da audiência pública para criar um impacto na audiência em relação aos problemas decorrentes da prática dessa prática (a terceirização). Elegemos temas fundamentais sobre o processo de terceirização, entre eles, os acidentes de trabalho, porque vários estudos demonstraram o alto índice de acidentes com vítimas fatais envolvendo terceirizados, principalmente nos setores petroleiro e elétrico.

No dossiê também mencionamos casos de empresas que não pagam os direitos trabalhistas. Apresentamos várias denúncias, principalmente do setor de vigilância, que é totalmente terceirizado. A proposta do dossiê é abordar vários aspectos da terceirização nos diferentes setores: comércio, informática, petroleiro, bancário, telecomunicações etc. para provocar uma reação da sociedade e das pessoas que participaram da audiência. Nosso objetivo é criar um campo de alianças com um leque de atores sociais que estão envolvidos no debate e montar uma frente contra o avanço da terceirização.

Quais são os principais problemas da terceirização e quais as reclamações dos trabalhadores? O que mudou para os trabalhadores a partir do boom da terceirização?

A terceirização se expressa de forma muito diferenciada de um segmento para outro. A Petrobras tem quase 300 mil trabalhadores terceirizados e 70 mil efetivos. Então, para cada trabalhador efetivo, há quatro trabalhadores terceirizados. Os terceirizados atuam em várias áreas, desde serviços de apoio, área administrativa, até em áreas que não são passíveis de terceirização. A Vale do Rio Doce também tem um número expressivo de terceirizados. No setor bancário, há uma vastidão de trabalhos realizados por esses funcionários. As casas lotéricas, que hoje prestam serviços bancários, também são uma forma de terceirização.

A queixa maior dos trabalhadores é que eles desempenham as mesmas funções que um trabalhador efetivo. Entretanto, os salários são em torno de 40 a 60% menores e as jornadas de trabalho são diferenciadas. Além disso, há discriminação em relação aos terceirizados. Em algumas empresas, eles devem entrar por um portão diferente do portão oficial por onde entram os trabalhadores efetivos. Eles também não utilizam o mesmo transporte coletivo e têm acesso a restaurantes diferentes, inclusive com uma comida de qualidade inferior. Os terceirizados não podem participar de atividades festivas, de lazer, recreativas, festas de finais de ano. Então, a discriminação não acontece somente no campo salarial, mas também nas relações entre os trabalhadores.

A terceirização fragmenta e cria uma segunda categoria de trabalhador, ou seja, o terceiro é um trabalhador de segunda categoria: menos qualificado e está mais submetido a um processo de rotatividade. Os terceirizados precisam trabalhar três anos para contribuir doze meses com a previdência por conta da rotatividade a que estão submetidos.

Como vê a proposta de se criar um marco regulatório para a terceirização?

Hoje, existe a súmula 331, que foi editada no início de 1990, substituindo a súmula 256. O Brasil é um dos únicos países da América Latina que não possui regulamentação para proteger o trabalhador terceirizado; não existe uma lei que regulamenta a terceirização. A súmula 331 tem uma série de precariedades, mas é o único instrumento com o qual nós contamos para barrar o avanço desse processo. Entre as precariedades, a súmula 331 não garante a responsabilidade solidária, apesar de colocar uma trava ao avanço da terceirização, ao admitir que ela possa ser realizada apenas na atividade de meio e não de fim. Em decorrência disso, nos últimos anos tentam-se formular proposições para regulamentar a terceirização.

Desde 1998, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu início a um processo de desregulamentação da legislação trabalhista, através da Lei 4320, que permitiu a ampliação do trabalho temporário de 90 para 180 dias. Quando se amplia o trabalho temporário, admite-se que é possível terceirizar qualquer tipo de atividade em um prazo de 180 dias, com a possibilidade de ampliá-la para mais 90 dias, ou seja, quase um ano. Em 2004, Sandro Mabel (PL-GO) apresentou o Projeto de Lei 4330, escancarando a terceirização e permitindo esse processo em todos os setores, estabelecendo uma relação “comercial” entre funcionários e empresas e não mais uma relação trabalhista. Em 2007, Vicentinho (PT-SP) apresentou o Projeto de Lei 1621, que dispõe sobre as relações de trabalho em atos de terceirização e na prestação de serviços a terceiros no setor privado e nas sociedades de economia mista. Depois disso, as centrais sindicais se movimentaram nos últimos três anos e conseguiram, em 2009, formular uma proposta de um Projeto de Lei sobre a regulamentação da terceirização, que está parado no Executivo, dependendo da liberação da Casa Civil para ir à votação no Congresso. Este é um projeto acordado entre as centrais sindicais e alguns juristas importantes, como Maurício Godinho.

Para nós, a regulamentação da terceirização tem apenas um objetivo: barrar a forma como a terceirização está se desenvolvendo hoje. Esse processo está se pulverizando e fragmentando os trabalhadores como se estivesse fazendo uma reforma trabalhista na “calada da noite”.

Quando existem, no mesmo local de trabalho, várias empresas prestando serviços e vários sindicatos representando as diversas categorias profissionais, a noção de identidade de classe trabalhadora pertencente a uma classe com os mesmos objetivos se dilui, porque cada trabalhador vai negociar a sua dinâmica com os seus sindicatos. Calculamos que mais de mil empresas prestam serviços para a Petrobras. Nós não conseguimos dados oficiais, porque ninguém fala sobre isso. É muito difícil organizar tais trabalhadores, dado o contexto de trabalho e a fragmentação.

Sou favorável à regulamentação da terceirização. O problema é que o Congresso é um ambiente desfavorável para os trabalhadores. Recentemente, o Projeto de Lei de Sandro Mabel foi aprovado por maioria na comissão de trabalho, mas está parado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ, para analisarem sua constitucionalidade. O projeto pode, a qualquer momento, parar na mesa a fim de ser encaminhado à votação no plenário. Se isso acontecer, não temos muita segurança sobre os rumos da terceirização porque boa parte do Congresso está favorável à proposta de aprovação do projeto dp deítadp Sandro Mabel. Por outro lado, o projeto de Vicentinho não andou, porque contrapunha-se o outro.

No início deste ano, quando Marco Maia assumiu a presidência da Câmara, tomou a iniciativa de montar uma comissão de estudos formada por trabalhadores e empresários. A ideia deste grupo é chegar a uma proposta consensual em relação a um projeto de lei sobre terceirização. A comissão avançou, tem uma proposta, mas não é consensual porque a CUT não concorda com o projeto substitutivo do deputado Mabel.

Para nós, três questões centrais e devem constar no projeto de lei que regulamente a terceirização. O primeiro diz respeito à responsabilidade solidária, ou seja, a empresa que contrata o serviço terceirizado tem que ser responsável solidariamente pelo trabalhador. Assim, caso a empresa contratada abra um processo de falência, a empresa contratante pode ser acionada conjuntamente com a empresa que contratou o terceiro. Hoje, a empresa que contratou a terceirização será acionada somente em última instância, caso a empresa prestadora de serviço não cumpra com as suas obrigações. Também lutamos para que a terceirização seja proibida para atividade fim. Esse é um elemento polêmico porque os dois projetos de lei que tramitam no Congresso alegam que a terceirização só será aceita em empresas especializadas. Entretanto, para nós, essa qualificação é muito ampla, pois todas as empresas são especializadas em uma área. O terceiro aspecto diz respeito à representação sindical, ou seja, os trabalhadores que estão dentro do local de trabalho precisam ser representados pelo mesmo sindicato que representa o ramo de atividade econômica e, portanto, os direitos dos terceiros precisam ser iguais aos direitos dos funcionários efetivos. Essas são as três questões-chave. E o grande problema é que as empresas, em vez de prestarem serviços, intermediam a mão-de-obra.

Quais são os limites das empresas que terceirizam serviços?

As prestadoras de serviços contratam um trabalhador, por exemplo, para prestar serviço dentro de uma empresa química, mas não pagam os benefícios para ele desempenhar tal função. Provavelmente essa pessoa entrará em contato com produtos químicos e, para realizar a atividade nesta empresa, precisaria receber adicional de insalubridade, periculosidade, uma série de benefícios que a legislação garante ao trabalhador que está sujeito a determinadas condições de trabalho. Então, o trabalhador presta serviço para uma empresa, mas trabalha em outra, a qual pode estar submetida a uma legislação diferente por conta da manipulação de produtos químicos, por exemplo, como acontece na indústria química. Existem casos em que os funcionários terceirizados atuam em uma empresa por mais de dez anos. No setor químico, por exemplo, o trabalhador oficial de uma empresa tem uma série de proteções, as quais o terceirizado não tem direito.

Com frequência, as empresas terceiras são de pequeno e médio porte, têm alta rotatividade e uma dinâmica de “abre e fecha”. Elas funcionam por um determinado tempo, depois fecham, trocam de nome e, quando acontece algum problema com o trabalhador, ele fica desamparado. Como a responsabilidade é subsidiária, se a empresa A contratou os serviços da empresa B, a empresa A só será acionada em última instância, depois que o judiciário esgotar todas as possibilidades de conseguir localizar a empresa B. Nossa briga é para que isso não ocorra. Então, caso aconteça algum problema com o trabalhador, as duas empresas serão acionadas conjuntamente e uma delas pagará o débito, o que chamamos de responsabilidade solidária.

O processo de desregulamentação da legislação do trabalho iniciado por FHC continuou no governo Lula e agora no governo Dilma ou parou?

Um dos principais motivos para dar continuidade a esse processo de desregulamentação era justamente o problema do emprego. Esse discurso ainda é evidente no setor patronal, que alega que a terceirização gera emprego, como se a empresa que não terceirizasse, não produziria determinada atividade. O setor ainda alega que é preciso terceirizar para reduzir o custo do trabalho, melhorar a competitividade da indústria brasileira, para que ela consiga competir com a indústria internacional. Esse elemento da competitividade ainda está presente nos dias de hoje.

De 1990 até 2003, foram gerados cinco milhões de postos de trabalho. De 2004 até 2010, foram gerados mais de 15 milhões de postos de trabalho, quer dizer, três vezes mais. O que determinou esse avanço foi o crescimento econômico. Essa é a primeira tese que conseguimos derrubar de que é preciso desregulamentar a legislação para garantir empregabilidade.

Nos últimos dez anos, aumentou a formalização de empregos e foram criados novos postos de trabalho, mas ainda convivemos com muitos problemas herdados dos anos 1990 e um deles é a questão da terceirização. Nesse sentido, o país continua na mesma situação de 20 anos atrás.

O enunciado 331 é do início de 1990 e, em 20 anos, não se conseguiu criar uma regulamentação que discuta a terceirização. Isso é um absurdo, considerando-se que temos um governo de esquerda. A América Latina já tem avanços significativos em relação a esse tema. O Equador já tem uma lei, de iniciativa do Executivo, que proíbe a terceirização. Então, esperava-se que o Brasil discutisse esse tema com mais cuidado. Entretanto, o projeto das centrais sindicais sobre o tema está parado há dois anos na Casa Civil.

O problema é que o processo de terceirização avançou. Na audiência pública realizada na semana passada, várias pessoas se manifestaram e falaram que, hoje, aproximadamente oito milhões de trabalhadores estão envolvidos em atividades de terceirização no Brasil, embora, não tenhamos estatísticas para medir isso. A nossa base estatística não nos permite, da forma como ela está organizada, determinar quantos trabalhadores são prestadores de serviço.

Parte do crescimento da terceirização teve influência do câmbio valorizado. Para os exportadores, câmbio valorizado é um fator de redução de competitividade do mercado externo. As empresas, tradicionalmente, utilizam a redução de custo do fator trabalho como elemento de competitividade, o que chamamos de competitividade espúria. Em vez de ela investir em tecnologia, em mudanças organizacionais, que dá possibilidade de obter uma competitividade sistêmica, ela opta pelo caminho mais curto: reduzir custo interferindo nos processos de trabalho, de produção ou adotando intermediação de mão-de-obra. As empresas estão contratando mão-de-obra para substituir efetivo.            
   
 
Certificações como os ISOs  contribuíram para acentuar a terceirização?

Não conheço nenhum estudo que aponte para isso. Foi lançada há pouco a ISO 2600, uma nova norma que tem o objetivo de fornecer diretrizes para orientar as práticas organizacionais sociais ambientalmente responsáveis nas empresas. Então, entre as diretrizes uma está relacionada a práticas de trabalho e direitos humanos. Nas práticas de trabalho, há um conjunto de medidas e normas que ajudariam a empresa a minimizar os aspectos da terceirização. A norma é uma orientação e as empresas adotam se querem, porque ela não servirá para obter selo e certificado de responsabilidade, embora aborde temas centrais. Pode ser que algumas empresas a adotem.

A terceirização é uma medida para reduzir custos. As empresas, dentro, dessa ideia de que devem investir no seu foco principal, as outras atividades se tornam secundárias e acabam sendo terceirizadas. O problema é que a terceirização avançou de tal forma, que funcionários terceirizados e não terceirizados desempenham a mesma função em algumas empresas.

Uma indústria farmacêutica de São Paulo terceiriza todo o processo de embalagem, que é feito basicamente por mulheres. Contratadas por uma prestadora de serviços, diariamente elas vão para a farmacêutica e têm uma situação de trabalho mais rebaixada que a dos funcionários efetivos. Além disso, a empresa também terceiriza os problemas relacionados à saúde. Então, para se livrarem de possíveis passívos decorrentes do trabalho, as empresas contratam funcionários terceirizados, gerando alta rotatividade.
 
A cada dez trabalhadores, seis não ficam mais de um ano no mesmo posto de trabalho. E isso tem um custo grande para o Estado, porque ele tem que acionar seguro desemprego, por exemplo. As empresas contratam e desempregam com muita facilidade. Em São Paulo, o setor farmacêutico contrata, por ano, 22 mil pessoas em seis meses e demite 21 mil. Temos que retomar a luta pela aprovação da correção 58, que é fundamental. Enquanto não conseguirmos garantir que a demissão sem justificativa seja punida, as outras medidas serão paliativas. Isso contribui para que a massa salarial fique mais achatada, pois os funcionários contratados são admitidos com salários menores dos que são dispensados.