O geógrafo marxista fala sobre os desafios da esquerda frente à crise internacional que aponta para o fim do neoliberalismo


“Sou a favor de se estabilizar o capitalismo através de medidas keynesianas que se transformem em possibilidades marxistas”, afirma David Harvey em entrevista concedida por e-mail à IHU On line “Sou favorável a isso porque um colapso ulterior do capitalismo sem nenhuma alternativa pronta para tomar seu lugar causará miséria e sofrimento incalculável para a massa da população, incluindo as pessoas que estão no setor informal, enquanto que a classe capitalista escapará relativamente incólume. A classe capitalista consolidará seu poder numa crise e tentará se proteger pela promoção de formas fascistas. A única maneira que consigo conceber de impedir isso é estabilizar o sistema a fim de criar uma ordem política mais forte para a construção da alternativa”.

Harvey é formado na Universidade de Cambridge, e atualmente é professor da City University of New York, onde trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana.

Confira a entrevista:

Quais são para o senhor, as propostas da esquerda frente à crise internacional?

O pensamento de esquerda não convergiu para algum consenso de propostas para enfrentar as dificuldades presentes, e pode levar algum tempo até que tal consenso surja. Estamos no início de uma crise de legitimação no mundo inteiro, em que um número cada vez maior de pessoas tem de questionar se o capitalismo é uma forma viável de satisfazer as necessidades humanas. Isto, por sua vez, levanta a questão de alternativas. Atualmente, há pessoas que procuram reformar o capitalismo de modo a obter maior igualdade e sustentabilidade ambiental versus aquelas que defendem um caminho mais revolucionário que procuraria derrubar diretamente o capitalismo.

Entre estas últimas, há uma cisma profunda entre as pessoas que consideram vital tomar o poder estatal e revolucioná-lo a caminho do socialismo e aquelas que procuram construir sistemas sociais e político-econômicos fora do capitalismo, do Estado capitalista e de suas instituições dominantes. O que é possível depende muito das circunstâncias políticas e econômicas. Nos Estados Unidos, sou a favor de um caminho de reformas que, gradativamente, leve o sistema na direção de soluções mais revolucionárias e não consigo ver outra forma de fazer isso exceto que as forças progressistas tomem o poder estatal e usem esse poder para desmantelar as estruturas de poder existentes.

Como a história da geografia mundial pode nos ajudar a compreender os rumos do capitalismo e a crise atual?

É muito importante entender o desenvolvimento geográfico desigual do capitalismo e que isso produz um terreno geográfico desigual de possíveis movimentos oposicionistas. Nos Estados Unidos, as condições objetivas e subjetivas para se dedicar à luta anticapitalista são radicalmente diferentes das condições existentes na China ou no Brasil, e um movimento global rumo ao socialismo tem de reconhecer essas diferenças e trabalhar com elas para tentar alcançar seus objetivos.

Considerando as questões geográficas e a crise do capital, que economia o senhor vislumbra para o futuro? O fato de o leste asiático poder se transformar numa potência é sinal de alguma mudança estrutural na economia?

Já faz alguns anos que os Estados Unidos vêm perdendo sua posição hegemônica dentro da economia global. Eles perderam sua dominância na manufatura nas décadas de 70 e 80, e agora estão perdendo sua dominância nas finanças, bem como sua influência política e autoridade moral (que estão sendo parcialmente recuperadas agora pela eleição de Obama). A única coisa que restou é o poder militar, e ele é limitado em terra, como vemos no Iraque e no Afeganistão.
O mundo está se tornando muito mais multipolar com a ascensão da China e do Leste da Ásia como centro importante de poder, com a formação da União Europeia. As propostas de formar um banco latino-americano sugerem que essa região também poderá se tornar um poder regional mais consolidado.

É possível resgatar o capitalismo dos capitalistas e “de sua falsária ideologia neoliberal”? Em que medida isso pode ser feito pela esquerda?

O neoliberalismo não acabou. Formas secretas dele ainda estão profundamente arraigadas em instituições e estruturas financeiras, e, se o neoliberalismo tem a ver com a consolidação do poder de classe, é bem possível que vejamos uma consolidação ulterior disso até chegarmos a ficar sem as legitimações ideológicas da ciência econômica do livre mercado. É a esta consolidação do poder de classe capitalista que a esquerda tem de se opor resolutamente, até nas ruas, se necessário. Esta é grande batalha que tem de ser travada por todas as facções da esquerda.

Economistas de todo o mundo recorreram às teorias de Marx e Keynes para pensar em alternativas à crise. Considerando o atual momento, a esquerda pode fazer mais do que isso, ou seja, propor novas alternativas ao invés de ficar atrelada apenas a essas teorias de salvamento da economia?

Esta é uma questão controvertida, de modo que vou dar minha própria opinião. Sou a favor de se estabilizar o capitalismo através de medidas keynesianas que se transformem em possibilidades marxistas. Sou favorável a isso porque um colapso ulterior do capitalismo sem nenhuma alternativa pronta para tomar seu lugar causará miséria e sofrimento incalculável para a massa da população, incluindo as pessoas que estão no setor informal, enquanto que a classe capitalista escapará relativamente incólume. A classe capitalista consolidará seu poder numa crise e tentará se proteger pela promoção de formas fascistas. A única maneira que consigo conceber de impedir isso é estabilizar o sistema a fim de criar uma ordem política mais forte para a construção da alternativa. Mas sei que muitas pessoas discordarão de mim, e não estou totalmente certo de ter razão.

Para o senhor, a esquerda de hoje pretende desaparecer com o capitalismo ou reformulá-lo?

O projeto de longo prazo é criar a alternativa ao capitalismo, e o longo prazo não pode ser muito longo porque esta crise nos mostra que o capitalismo como sistema histórico mundial está próximo de seu fim e suas possibilidades estão perto de serem exauridas. Portanto, temos de passar de modo rápido, mas deliberado, pela reforma para a transformação revolucionária.

Diante da crise, muitos especialistas tratam da importância de regular o mercado. Nesse sentido, que função deve ser desempenhada pelo Estado? Que estratégia é primordial nesse momento?

Nossos problemas atuais não serão resolvidos pela regulamentação, absolutamente. Essa não é a questão. O Estado tem um papel crucial a desempenhar no lançamento de um programa de estabilização para o capitalismo, mas, por definição, esse programa de estabilização tem de empoderar os trabalhadores, de modo que, quanto mais empoderados estiverem, tanto mais o Estado se tornará um instrumento em suas mãos que pode ser usado para delinear a transição para o socialismo.

O senhor concorda com as medidas adotadas pelos governos mundiais, que estão disponibilizando dinheiro para salvar instituições falidas? Por que não há uma redistribuição de recursos a favor dos setores mais necessitados da sociedade? Quais serão as consequências disso a longo prazo?

A regra áurea neoliberal, desde a década de 70, tem sido salvar as instituições financeiras às expensas do povo, e é exatamente isto que estamos vendo agora. É por isso que eu digo que o neoliberalismo não acabou. Essa preferência por salvar as instituições financeiras e, ao mesmo tempo, ferrar o povo continuará, a menos que haja uma oposição maciça a ela. Se isso continuar, talvez saiamos da crise atual de tal forma que muitos de nós terão perdido seu ganha-pão e seus ativos, e ainda por cima seremos lançados de novo numa crise mais profunda e mais complicada daqui a cinco anos. A frequência e a profundidade das crises financeiras aumentaram nos últimos 30 anos de dominação neoliberal, e isso não deixará de ser assim até que desmantelemos a versão neoliberal do capitalismo e, em última análise, o próprio capitalismo. Mas temos de fazer isso dando um passo de cada vez.