‘É preciso um projeto que dialogue com os que sentirão os danos do golpe’

 

 

A partir deste janeiro, o cientista político Fernando Haddad se apresenta à Universidade de São Paulo para reassumir sua cadeira de professor. Mas já não é mais o mesmo depois de uma profunda imersão no mundo da política. Trabalhou na gestão da ex-petista Marta Suplicy (2001-2004) na prefeitura de São Paulo, na qual participou da elaboração de um Plano Diretor Estratégico, que seria depois abandonado pelos sucessores José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (então no DEM). Por isso, afirma ter tomado precauções para que o novo PDE, elaborado no meio de sua gestão na prefeitura e com diretrizes de planejamento até 2030, ficasse bem “amarrado” e difícil de ser desmontado. “Podem querer ajustar, mas desmontar será difícil.”

A partir do governo Lula, em 2003, tornou-se secretário-executivo do Ministério da Educação até 2005, quando assumiu o comando da pasta, em substituição a Tarso Genro, lá permanecendo até 2012, quando deixou o posto para disputar sua primeira eleição. Mesmo em pleno bombardeio do julgamento televisivo do mensalão, o petista acabou vencendo o tucano José Serra.

Ele afirma que não tem ambições políticas pessoais em seu horizonte e que seu compromisso é estar à disposição das forças progressistas para a construção de um programa para o país. “Quero colaborar para recompor uma condição que permita ao Brasil retomar o processo que foi começado em 2003. Nós crescemos de forma importante, mas o processo foi abortado e temos de encontrar um caminho de resgatar aquele projeto de um novo Brasil.” Um projeto, segundo ele, abortado com violência, que trazia crescimento de forma importante, e que as pessoas ainda não se deram conta dos prejuízos causados pelo golpe e dos que ainda estão por vir.

O agora ex-prefeito de São Paulo alerta que as forças mais avançadas da sociedade têm de superar eventuais diferenças e se reorganizar em torno de um programa e de um polo mais forte, num momento em que o país vive um absoluto déficit de republicanismo. “Se nos fragmentarmos, não vamos disputar o imaginário da sociedade, por melhor que seja o nosso projeto. É hora de sentar à mesa, discutir programaticamente o que fazer, o que faríamos se estivéssemos no comando do país. Tentar alinhavar um projeto que dialogue com os que estão sofrendo os efeitos da crise, para termos chance de concorrer com condições de vitória”, defende.

O sr. acha que a esquerda se afastou da população?

Por exemplo, houve críticas à campanha de Marcelo Freixo (Psol) no Rio, porque muito se falou em desmilitarização da polícia, descriminalização das drogas, direitos humanos e não se discutiu aquilo que a população em geral mais se preocupa, como saúde, tarifa de ônibus, emprego…

Existe esse risco. Se a gente não tiver atenção para aquilo que mais aflige a população, corre o risco ter uma pauta setorial, que vai dialogar com nichos da sociedade, mas não vai dialogar com o todo. E o que o todo quer é viver num ambiente de prosperidade, que foi a marca do governo Lula. A questão programática é a mais importante. Estou interessado em debruçar e colaborar com um projeto para o país. Não está no meu horizonte disputar eleição.

 

O que o sr. vai fazer a partir de 2 de janeiro?

Me apresentar na USP, onde eu ganho meu pão. A partir do dia 2 volto para lá. Estou participando dos debates, da discussão com os setores avançados da cidade. No que eu tenho mais interesse em investir agora? Na questão programática. É a mais importante das questões. Antes de discutir quem sairá candidato a isso e aquilo, estou interessado em debruçar sobre a questão do projeto para o país, colaborar com isso. Não está no meu horizonte disputar uma eleição. Não penso nisso agora. Projeto pessoal é uma coisa demodê, acho que você tem de representar alguma coisa, ser a expressão de um movimento.

Mas o sr. se tornou uma expressão política habilitada a disputar parlamento, governo estadual e até federal. O sr. se colocará à disposição do partido para disputar eleições?

Estamos em uma situação tão anormal que tem alguns pressupostos que precisam ser respondidos antes. Por exemplo, a questão programática. Em segundo, a renovação do PT. Terceiro, a relação do PT com outras forças de esquerda e progressistas. Há tarefas para cumprir que, se a gente se desviar delas, a gente corre o risco de tomar o essencial pelo acessório.

 

Por onde passa essa renovação do PT?

É importante salientar que as pessoas acham que existe um campo e se você tirar o PT, outro partido assumirá esse espaço. Não é assim que funciona. O PT tem uma história, uma gênese única, capilaridade. Temos um partido que está machucado e precisa encontrar um caminho de cicatrização de tudo que aconteceu. Apesar de daqui a dois anos ter eleição – pelo menos eu espero que tenha –, o fato é que temos de entender a situação atual, as tarefas a cumprir e depois fica fácil decidir os candidatos. Mas não estamos em uma situação normal. Estou despido de ambições pessoais, quero colaborar para recompor uma condição que permita ao Brasil retomar o processo que foi começado em 2003. Nós crescemos de forma importante, mas o processo foi abortado e temos de encontrar um caminho de resgatar aquele projeto de um novo Brasil, com oportunidades, mais igualitário, com mais esperança. As pessoas ainda não se deram conta dos prejuízos causados nos últimos anos.

Nem dos prejuízos que estão por vir. Quando se fala em “renovação” do PT, se admite um envelhecimento. O que o PT fazia quando era jovem, parou e precisa voltar a fazer?

Sem dúvida já fomos um partido de massa e hoje somos menos. A grande diferença do PT com os outros partidos de esquerda é que o PT nunca se viu como um partido de quadros, mas como um partido capilar, que estava em todos os cantos. A gente perdeu um pouco isso. Talvez retome agora.

Na resistência ao impeachment, faltou unidade para juntar as resistências ao impeachment? Por exemplo, nem “volta, Dilma”, nem “diretas já” produziram consensos, em pleno bombardeio.

Foi tudo muito rápido, construído de forma ardilosa. Foi um processo bem pensado, feito por profissionais, coisa bem elaborada.

Começando 2017 na situação em que o país e o mundo se encontram, dá para ficar alguém ficar tranquilão?

São dimensões diferentes do humor. Em qualquer circunstância, mesmo diante de coisas dramáticas assim, eu estarei com esse estado de espírito. Eu sou meio budista para lidar com as coisas. Tenho uma compreensão sobre história do Brasil, então sei entender os nós institucionais em que estamos imersos. Lamento muito o que está acontecendo, estamos regredindo do ponto de vista institucional. Mas, enfim, estamos aí para brigar, né?

A que fatores o sr. atribui essa crise institucional em que o Brasil está mergulhado?

Para mim, havia um ressentimento crescente no seio da sociedade. Mesmo no período mágico que o Brasil viveu, principalmente no segundo mandato do presidente Lula. Existe um fenômeno, que é a perda de posição relativa das classes médias tradicionais, em relação às camadas populares. Aquela sensação de que não se podia mais falar em privilégio porque as pessoas estavam ingressando no mundo das oportunidades econômicas, na universidade, nos aeroportos, no consumo de massa. Isso tudo foi criando uma sensação de que havia prejudicados pelo processo. Na verdade, o que estava havendo era uma mudança de composição da sociedade. Uma mudança que nunca foi assimilada, nunca foi bem compreendida. É como se tivéssemos estamentos e fosse permitido a um indivíduo mudar de estamento. Mas não fosse permitido que esses estamentos se aproximassem uns dos outros.

É um fenômeno local, ou o cenário internacional influencia?

A elite econômica está colhendo os frutos de uma deterioração decorrente da crise internacional de 2008, com a emergência de partidos de direita e extrema-direita assumindo o controle das economias. E quando houve uma brecha para a direita brasileira explorar, explorou como ninguém, porque conhece do assunto como ninguém. Aproveitou fragilidades do governo Dilma, tanto do ponto de vista político como econômico, e turbinou uma crise que seria apenas conjuntural. Poderia durar um ano, 2015 talvez, um freio de arrumação para que as coisas voltassem ao normal. Mas ela apostou no pior, para desestabilizar o governo e promover um impeachment sem crime de responsabilidade.

Com um aparato tão complexo em torno do impeachment – setores do Judiciário, imprensa, oligarquias políticas, interesses externos e uma parcela da população que aderiu a isso –, esse golpe é reversível?

O que se revelou no Brasil é um déficit de republicanismo a toda prova. As instituições não estão funcionando de forma republicana. E os desdobramentos disso ainda não podem ser entendidos em toda sua magnitude, porque, quando você começa a colocar os alicerces da vida democrática em jogo, não se sabe onde isso vai parar. Creio que a tentativa deles é levar esse governo provisório até o final, para contar com condições favoráveis de eleger um conservador em 2018. Mas se isso vai se consolidar ou não, só o tempo vai dizer, há muita instabilidade no ar. A começar da questão econômica que não se resolve.

O fato de a questão econômica não se resolver, e tender a se agravar, pode criar um ambiente mais tenso? O sr. acredita que haja espaço para eleições diretas antes de 2018?

Têm surgido teses sobre a realização de eleições diretas. E o próprio PSDB reconhece que a escolha indireta de um presidente talvez agrave a crise política, que está na raiz da crise econômica tão aguda quanto ficou. Nós só estamos passando por uma crise econômica tão aguda porque a crise política é um combustível permanente. É difícil prever agora os desdobramentos. No âmbito da Lava Jato ainda tem muita para acontecer. Não sei se as delações que envolvem PMDB e PSDB vão ser tratadas da mesma maneira, no mesmo rigor e até com as arbitrariedades que estão vindo a lume (quando a acusação é contra petistas). O primeiro semestre de 2017 vai ser decisivo nesse processo.

O sr. já disse que deve haver uma disputa entre direita e extrema-direita, com a esquerda fora do foco das discussões. Como a esquerda pode se reorganizar para manter seu espaço?

Quando eu falo em direita e extrema-direita como polos, é sempre como tendência. Um alerta para que as forças mais avançadas da sociedade se reorganizem em torno de um polo mais forte. Porque se nós nos fragmentarmos, não vamos ter chance de disputar o imaginário da sociedade, por melhor que seja o nosso projeto. É hora de sentar à mesa, discutir programaticamente o que fazer, o que faríamos se estivéssemos no comando do país. Tentar alinhavar um projeto que dialogue com os que estão sofrendo os efeitos da crise, para termos chance de concorrer com condições de vitória.

O Lula trabalha muito a ideia de uma frente a partir do centro político. E alguns setores da esquerda avaliam que não é mais possível juntar um movimento de conciliação de classes, é preciso criar um modelo de ruptura, que esteja pronto para superar o neoliberalismo. Cabe todo mundo nesse conceito de frente?

Hoje nós temos os extremos adensados e o centro político esvaziado. Eu acredito que, pelas características da população, nós vamos ter de manter um diálogo com as forças democráticas do país. O Brasil tem de estar nesse projeto. E há muita gente boa, com quem se precisa conversar para isso. Eu entendo que se coloque em questão a visão mais conciliadora, em função até de como o outro lado está tratando os temas nacionais, sem nenhum diálogo, tudo feito a toque de caixa, sem discussão com a sociedade, nem com partidos de oposição. Mas eu entendo que nós temos que adensar os setores democráticos, desafiar os riscos que estão colocado a partir do desmonte que está sendo feito do pacto Constitucional de 1988.

 

VIA Rede Brasil Atual