Lava Jato completa dois anos com 141 prisões, seletividade e afronta a direitos individuais

A Operação Lava Jato completa dois anos na quinta-feira (17) e acumula 24 fases. São 147 mandados de prisões, sendo 62 preventivas e 63 temporárias, 411 ordens judiciais, 88 condenações, 117 conduções coercitivas para tomada de depoimentos e 51 delações premiadas. A operação ainda investiga 47 políticos e levou à prisão o senador Delcídio do Amaral (PT-MS). Em 4 de março, armou um circo na condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, até hoje com reais objetivos e dimensões ainda não esclarecidos.

O fato de ter desvendado caixas pretas que há anos se denunciavam timidamente nos contratos da Petrobras e moedas de troca entre políticos e empreiteiras poderia ser motivo de festa para o país, não fosse uma questão primordial: as ameaças e violações ao Estado democrático de direito. Sobretudo por terem surgido denúncias de que o esquema opera na estatal desde pelo menos os anos 1990, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e pelo fato de essas denúncias terem sido abafadas.

A lista de prisões envolveu, além dos políticos, doleiros, publicitários, empresários e banqueiros – alguns deles figuram entre os maiores detentores do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Mas em vez de ser “a grande solução para combater práticas ilícitas denunciadas há décadas no Brasil”, como muitos insistem em definir, a Lava Jato passou a ser bombardeada por críticas de promotores, magistrados dos tribunais superiores, advogados renomados, juristas, cientistas políticos, professores e observadores sociais. Isso, pela constatação do caminho parcial que tem tomado e, principalmente, pela forma como tem desviado princípios fundamentais da Constituição.

Uma compilação com análise dos atos da operação pode ser encontrada no livro A Outra História da Lava Jato, lançado recentemente, que tem como autor o jornalista Paulo Moreira Leite, diretor de redação em Brasília do portal Brasil 247. Moreira Leite, com 40 anos de jornalismo, avalia os acontecimentos desde a primeira fase da operação e reúne entrevistas com personalidades – são 45 artigos que abordam as ações comandadas pelo juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba.

Destacam-se, entre esses itens criticados, a politização com que os agentes da Justiça Federal, Polícia Federal e Ministério Público Federal (MPF) têm atuado, a quebra do direito ao contraditório pelos réus, o cerceamento do direito de defesa, o vazamento seletivo de informações e a relação simbiótica com a imprensa como forma de produzir um julgamento público ainda no decorrer das investigações, os tratamentos diferenciados dados a políticos e empresários ligados a determinados partidos em detrimento de outros. E práticas abusivas de prisão preventiva vistas como forma de forçar os investigados a fazer delações premiadas.

As ações, além de confundir a opinião pública e promover a repulsa generalizada à política, afetaram de forma contundente a imagem da Petrobras, provocaram queda de atividade de toda a cadeia produtiva que orbita os setores de óleo, gás e infraestrutura e contribuíram para a a instalação de um ambiente de ameaça às conquistas democráticas e avanços sociais.

“Temos um projeto de uma investigação necessária, que é a investigação sobre uma empresa pública que precisa ser apurada. Ninguém é a favor da corrupção, mas a Lava Jato se resumiu numa operação que, na verdade, questiona a democracia, o que é inaceitável”, afirma Paulo Moreira Leite. “É uma história de muitos fatos que precisam ser explicados, fatos que a imprensa, em sua maior parte, não tem sequer questionado. Uma história em que as delações premiadas são a base para busca de informação, onde se tem prisões provisórias sem prazo para acabar, como forma de convencer pessoas a contar histórias. E a gente sabe que isso fere a democracia.”

O jornalista destaca que, além de tudo, a Lava Jato é uma operação “dirigida politicamente”. “As investigações só vão para um lado, elas param quando chegam em casos que envolvem o governo anterior. Os acusados no governo anterior sequer são investigados”, completa – referindo-se aos indícios de negócios obscuros entre executivos da estatal e integrantes do governo FHC. Ele, que debruçou de igual forma na cobertura do julgamento da Ação Penal 470 – que resultou no livro A Outra História do Mensalão, lançado em 2013 – considera que mesmo com várias contradições tendo sido observadas, o que se vê hoje na Lava Jato é um agravamento da condução jurídica dada ao caso anterior.

“Na AP 470 se pediu a prisão preventiva dos acusados e o ministro Joaquim Barbosa recusou. Houve um respeito maior pelos acusados, podemos dizer que o direito de defesa foi exercido. Não em sua plenitude porque não foi, já que muitas contraprovas que interessavam à defesa foram ignoradas. Mas hoje a primeira instância decide tudo, as pessoas são presas sem ser condenadas. É uma situação bastante complicada”, acrescenta.

Uma das melhores análises sobre a operação Lava Jato apresentadas no livro é a do advogado, professor de Direito e ex-integrante do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Luiz Moreira. “O combate à impunidade não pode significar violação à Constituição, significa investigação criteriosa, com autonomia operacional da polícia, independência institucional do MPF e garantias à atuação do Judiciário. Significa também presunção da inocência, divisão entre as atividades de acusar e de julgar, devido processo legal e reconhecimento da importância do advogado para o sistema da Justiça.”

Tentação dos holofotes

O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, que fez o prefácio da obra, chama a atenção ao afirmar que desde o julgamento da AP- 470 “o Judiciário não renunciou mais à tentação dos holofotes”. “É inédita a frequência com que magistrados de todas as instâncias e amparo institucional deitam falação a repórteres de jornais, revistas e canais de televisão. São diários os boletins de ocorrência nos mais variados juizados, contendo depoimentos, comentários dos responsáveis por estes, anúncios de novos capítulos, prejulgamentos e controvérsias sem fim. Mais do que uma judicialização da política, assiste-se a uma espetacularização da Justiça, com a assídua contribuição de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)”, ressalta Wanderley Guilherme.

De acordo com Luiz Moreira, na perspectiva adotada pela Lava Jato, que ele chama de “direito penal do inimigo”, duas questões afrontam o direito penal constitucional vigente no país. A primeira é a transformação do depoimento do delator de indício em prova, com a consequente equiparação dos depoimentos de dois ou de mais delatores em conjunto comprobatório. E a segunda, a tendência a se perder a diferença qualitativa, “ainda existente, entre os métodos investigativos da polícia e do MP dos praticados por delinquentes”.

Até mesmo os magistrados do STF, mais alta Corte do país, mostram preocupação com os rumos dos trabalhos. Numa das entrevistas, o ministro Marco Aurélio Mello afirma que vê, no cenário nacional, “uma inversão de ordem natural das coisas”. “Vem da Constituição o princípio da não culpabilidade. Mas infelizmente, ao invés de apurar-se para, selada a culpa, prender-se, prende-se para depois apurar”. Já o ministro Teori Zavascki, relator dos casos relacionados à Lava Jato no STF, chegou a enfatizar que esse estilo de investigação pode ser classificado como “mediavalesco” e “cobriria de vergonha qualquer sociedade civilizada”.

Numa análise dos acontecimentos que marcam os rumos da operação, Paulo Moreira Leite lembra que em artigo de 2004, em considerações sobre a Operação Mãos Limpas (que levou para a cadeia muitos corruptos da Itália), Moro falou em um termo pouco conhecido, o de “deslegitimação”. Criado por intelectuais europeus que estudaram o caso italiano, esse termo é definido como “um processo empregado por juízes e pelos jornais daquele país para desmoralizar políticos e empresários denunciados, impedindo que tivessem credibilidade para defender-se de acusações”.

Ao fazer uma comparação entre a Operação Mãos Limpas e a Lava Jato no livro, o advogado Marcello Lavenère considera que o caso italiano teve o mérito de devassar a corrupção política daquele país, mas a política de terra arrasada que implementou só beneficiou Silvio Berlusconi, que era proprietário de monopólio de emissoras de TV, entre outros negócios. “Berlusconi encontrou, no episódio, o caminho para se transformar no mais longevo e nocivo primeiro-ministro da Itália depois da Segunda Guerra.”

Retrospectiva de irregularidades

Paulo Moreira Leite assinala um fator importante em meio a essa teia de apurações: o de que a maioria dos veículos de comunicação “combateu editorialmente a criação da Petrobras, em 1953, nunca escondeu sua oposição à Lula e Dilma e sempre se alinhou às críticas de concorrentes do setor privado ao método de partilha para exploração das reservas do pré-sal, considerado o mais vantajoso em áreas de exploração de pouco risco”.

O jornalista observa que, no mundo inteiro, a posse de reservas de petróleo é um fator de enriquecimento, poder político e também de corrupção. Ele lembra o reflexo que tal fator sempre teve nos regimes do Oriente Médio e na Venezuela.

No Brasil, ao fazer uma espécie de retrospectiva, o autor destaca que “apenas a censura impediu, durante a ditadura militar, que o enriquecimento de autoridades, executivos e empresários ligados à Petrobras pulasse o muro dos murmúrios reservados e se tornasse assunto de domínio público”.

Depois, no governo José Sarney, “descobriu-se um esquema de desvios na BR Distribuidora”. No governo Collor, “pressionado pelo tesoureiro PC Farias, o advogado Luiz Octávio da Motta Veiga pediu demissão da presidência da Petrobras” por denúncias de irregularidades. E no governo Fernando Henrique Cardoso, acentua que “nem uma denúncia de Paulo Francis, jornalista de alta credibilidade na corte do PSDB, convenceu as autoridades a abandonar a própria letargia e ir atrás das acusações”.

“Se a investigação de denúncias na Petrobras sempre foi uma necessidade, é impossível deixar de perguntar por que só agora se resolveu descobrir segredos tão antigos. A Lava Jato ocorre depois que os horizontes da democracia brasileira foram alargados dramaticamente, após a chegada de Lula e do PT ao governo, permitindo, pela primeira vez, que as camadas subalternas pudessem ter alguma voz – nem sempre ouvida – nas decisões de Estado”, comenta no livro PML, como é conhecido.

Para o autor, até então encaradas com desconfiança e pouco caso pelos governos anteriores, as reservas de pré-sal modificaram as bases materiais da política energética do país, que conquistou um novo lugar entre as potências mundiais de petróleo.

Talvez daí seja possível decifrar tudo o que está acontecendo atualmente. “Nem o juiz Sérgio Moro, nem os procuradores envolvidos no caso teriam sido capazes de chegar aonde chegaram se sua atuação não atendesse a interesses econômicos e políticos capazes de mobilizar a parcela mais influente da sociedade, mas incapaz de se impor pelas urnas, onde cada homem vale um voto”, reflete.

Fonte: Rede Brasil Atual